Atravessando uma crise que há cerca de 30 anos impossibilita o país de equilibrar suas contas, a Argentina, hoje liderada pelo presidente Mauricio Macri, passa por um dos momentos mais críticos desde que declarou moratória às vésperas do natal de 2001.
De 2018 para cá, o país aplicou uma série de medidas para tentar frear a escalada da inflação -- que fechou 2018 em 47,6%, a maior dos últimos 27 anos --, e a desvalorização do peso frente ao dólar. Além disso, a crise econômica fez crescer a desconfiança internacional em relação à Argentina, fazendo com que o risco-país (ágio que os investidores cobram para emprestar dinheiro) superasse os mil pontos, tornando-se, de longe, o mais elevado da região.
Buscando evitar a fuga de capitais -- que contribui para a desvalorização da moeda --, o Banco Central argentino estabeleceu sucessivos aumentos na taxa de juros. O último foi divulgado na terça-feira (30), fixando a tarifa em 73,9%. Além disso, o país recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI), em um acordo de empréstimo na ordem dos US$ 57,1 bilhões, e anunciou o congelamento de preços de diversos produtos.
Segundo Emiliano López, professor e pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), muitas das medidas aplicadas por Macri só serviram para agravar ainda mais a situação do país. Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista afirmou que “os valores de juros sobre a dívida já são impagáveis”, o que pode levar a Argentina a ter que declarar moratória novamente.
Leia a entrevista completa abaixo:
Brasil de Fato: Quais são os principais fatores que explicam a crise econômica argentina?
Emiliano López: Podemos apresentar quatro questões centrais. A primeira diz respeito à restrição externa. A Argentina precisa, por ser um país dependente, de uma grande quantidade de dólares para sustentar um crescimento duradouro. O salto nas exportações que o governo Macri esperou que acontecesse após a desvalorização do peso nunca ocorreu. Diante disso, o ingresso de dólares se deu por meio de um endividamento externo acelerado.
Nos primeiros anos de governo, o endividamento ocorreu mediante a venda de títulos da dívida a grupos de inversão estrangeiros. Quando o capital internacional deixou de comprar a dívida argentina, o governo recorreu ao FMI, que impôs fortes condicionamentos a sua política econômica. O peso da dívida já alcança 100% do PIB e representa uma sobrecarga enorme para as contas públicas do país.
Em segundo lugar, a aposta de conter a saída de capitais do país por meio de um aumento aberrante das taxas de juros e o oferecimento de pagamentos de bônus a curtíssimo prazo, como ocorreu com as Letras do Banco Central (LEBACs), agora convertidas em Letras de Liquidez (LELIQS). Esses bônus, que tiveram taxas que passaram de 30% a 75% ao ano em poucos meses, marcaram o fracasso da tentativa de conter as divisas que ingressaram por meio do endividamento. As medidas não fizeram mais que acelerar a financeirização de nossa economia, acentuando a instabilidade.
O terceiro ponto é a aceleração da inflação. Deixar a taxa de câmbio flutuando livremente em um contexto global em que os capitais procuram amparo nas grandes economias centrais implica uma estratégia suicida para nosso país. Somado a isso, em uma típica política neoliberal, o governo permitiu dolarizar as tarifas de serviços públicos e o combustível. Todos esses aumentos diminuem as possibilidades de consumo das classes populares.
Por último, o ajuste fiscal, que os ideólogos neoliberais apresentam como uma saída aos problemas do país, não faz mais que gerar um ciclo vicioso de recessão, déficit e, novamente, recessão. O ajuste, para a classe trabalhadora, não faz mais que aprofundar a queda do consumo, levando à diminuição da produção, o que, por sua vez, impacta na arrecadação. Isso faz com que seja necessário um ajuste ainda maior. A medida é não só perversa ao povo, mas também se mostra ineficaz para reativar a economia.
Todas as moedas dos mercados emergentes se desvalorizaram com o aumento da taxa de juros norte-americana, mas nenhuma sofreu tanto quanto o peso argentino. Por quê?
A particularidade do peso argentino se deve a duas questões sobre as quais o governo parece ter absoluta ignorância. Por um lado, como é um país que tem uma inserção internacional ligada à produção de matérias-primas, o canal externo é central para explicar a inflação doméstica argentina. Isso significa que a flutuação da taxa de câmbio se torna uma variável sobre a qual todos os empresários exportadores pressionam, em particular os que pertencem ao setor agroexportador. Eles esperam liquidar suas exportações para que o peso se desvalorize cada vez mais.
Por outro lado, a decisão de conter o capital por meio da combinação de flexibilização cambial e taxa de juros exorbitantes, não fez nada além de acelerar a pressão sobre o peso: os investidores compram títulos da dívida de curto prazo. Depois, exigem dólares, pressionando para que o peso caia. Em seguida, retiram o capital.
Os problemas econômicos na Argentina já perduram por décadas, tendo o país inclusive passado por uma moratória em 2001. A crise de hoje pode ser explicada como um efeito das décadas anteriores ou as medidas adotadas por Macri pesaram para seu agravamento?
É claro que estamos numa posição dependente desde a nossa conformação como Estado Nação. No entanto, creio que os dois momentos em que tivemos problemas maiores têm relação com a implementação de programas neoliberais, em que os processos de endividamento público e privado alcançaram níveis muito elevados em termos internacionais.
As medidas concretas de liberalização comercial [retirada de controles às exportações e quotas de importação] e financeira, o endividamento acelerado, a decisão de dolarizar as tarifas, a flutuação cambial sem controles e o ajuste generalizado sobre salários e gastos sociais apenas aprofundaram as tensões históricas de nosso país. Não por acaso, a ofensiva neoliberal que a Argentina encarna com o governo Macri possui elementos que dão continuidade ao programa econômico neoliberal da década de 1990.
Para cumprir as exigências feitas pelo FMI, o Senado da Argentina aprovou um orçamento que contém uma série de medidas de austeridade. Quem são os mais afetados pelos cortes?
Os setores mais pobres da nossa população. Os cortes nos gastos sociais foram os mais importantes e visam reduzir o papel do Estado no que diz respeito à aplicação de políticas gratuitas. No entanto, também houve cortes bruscos na infraestrutura. Ainda assim, é extremamente improvável que o déficit zero proposto pelo governo possa ser cumprido. Até mesmo os representantes do FMI confirmaram isso em suas últimas declarações.
Macri foi eleito com o apoio do mercado, que acreditou que sob seu governo dificilmente a Argentina passaria por uma nova moratória. Agora, cada vez mais economistas consideram a possibilidade de um default. Isso pode acontecer?
É completamente possível. Os valores dos juros sobre a dívida já são impagáveis. Estamos falando de quantias que chegam a 30 bilhões de dólares por ano. Portanto, cada pagamento se faz por meio da contração de uma nova dívida ou de seu refinanciamento. Um dado relevante é o de que o mercado financeiro parece estar retirando seu apoio de forma acelerada. Muitos estão falando de um golpe de mercado e as ações argentina estão se desvalorizando na maioria das bolsas.
A Argentina anunciou o congelamento no preço de diversos produtos. Como essa medida deve impactar na economia?
A possibilidade do congelamento de preços ter efeitos positivos é nula. Primeiro, porque é uma fixação de preços que reconhece um novo aumento: inclui o aumento de preços de abril, que é muito elevado. Em segundo lugar, o Estado possui a capacidade de regular e fiscalizar o preço de poucos produtos. Além disso, nenhum acordo desse tipo -- feito com o empresariado -- funciona no formato de “pacto de cavalheiros”, como foi apresentado pelo ministro da Fazenda. É necessário um Estado com poder de fiscalização e de controle real sobre os desvios empresariais. De fato, o próprio empresariado virou as costas para essas medidas, o que evidencia a debilidade, em termos de base de apoio social, que o governo tem para sua aplicação.
A crise na Argentina levou 2,7 milhões de pessoas à pobreza nos últimos seis meses. Também levou a um aumento no número de desempregados e de pessoas trabalhando em situação informal. Há alguma medida para reverter esses fenômenos?
É uma pergunta difícil, porque considero que não existe uma solução técnica, e sim política. Só podemos pensar em outro programa político se tivermos um projeto de governo que coloque em primeiro plano as necessidades das classes populares, o desenvolvimento das pequenas e médias empresas -- que apostam no mercado interno --, e que rompa com as imposições do FMI e dos grandes capitais financeiros. Creio que, somente com um projeto de país que tenha essas prioridades em sua agenda, poderemos discutir as soluções técnicas necessárias. No contexto atual, não podemos esperar mais que um panorama obscuro para os trabalhadores, trabalhadoras e setores mais humildes da nossa população.
Edição: Rodrigo Chagas