Violência agrária

Oposição e sociedade civil reagem a proposta de Bolsonaro para conflitos no campo

Em troca de afagos com ruralistas, presidente prepara PL que libera de punições fazendeiros que atirarem em “invasores"

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

Ouça o áudio:

Jair Bolsonaro (PSL) repete o polêmico gesto com as mãos em forma de arma durante evento anterior às eleições de 2018
Jair Bolsonaro (PSL) repete o polêmico gesto com as mãos em forma de arma durante evento anterior às eleições de 2018 - Carl de Souza/AFP

Em um novo capítulo das disputas relacionadas à luta agrária no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou, na segunda-feira (30), que pretende enviar à Câmara dos Deputados um projeto de lei que libere de eventuais punições proprietários rurais que atirarem em “invasores” de terra.  

“Vai dar o que falar, mas é uma maneira que nós temos de ajudar a combater a violência no campo. É fazer com que, ao defender a sua propriedade privada ou a sua vida, o cidadão de bem entre no excludente de ilicitude. Ou seja, ele responde, mas não tem punição. É a forma que nós temos que proceder para que o outro lado, que desrespeita a lei, tema vocês, tema o cidadão de bem, e não o contrário”, disse Bolsonaro a um público formado especialmente por ruralistas.  

A declaração foi dada durante um evento de tecnologia agrícola em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e ecoou no parlamento. Deputados de oposição se manifestaram contra a proposta, destacando que a medida poderia significar um salvo-conduto para a prática de abusos, endossando a violência no meio rural.  

“O que ele falou nada mais é do que estimular a violência no campo. É uma insanidade”, disse o deputado Valmir Assunção (PT-BA), um dos parlamentares que acompanham de perto a pauta agrária no âmbito do Congresso Nacional.  

Pelo Twitter, o deputado Glauber Braga (Psol-RJ) disse que a medida seria “uma licença pra que latifundiários matem sem-terra”. “O que diminui a violência no campo é proteger trabalhadores rurais e camponeses com políticas públicas que garantam terra e condições pra plantar e colher”, argumentou.  

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AM) também se manifestou pela mesma rede social. "A ‘solução’ de Bolsonaro para a questão fundiária no país é de uma irresponsabilidade ímpar: ‘sentar a bala’ nos assentados, estimulando irresponsável e abertamente a escalada de violência no campo”, criticou o parlamentar.

CPT

As reações chegaram ainda à sociedade civil organizada. Em nota pública divulgada nesta terça-feira (30), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), repudiou a proposta.

A entidade lembrou a questão legal que circunda as ocupações de terra, geralmente promovidas por segmentos populares que atuam em defesa da reforma agrária, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

“Na sua fala, o presidente reafirma mais de uma vez que a propriedade é sagrada, sem se atentar para a ‘função social da propriedade’, como reza a Constituição Federal (arts. 185 e 186). Deixa de lado, também, a forma como foram constituídas tais ‘propriedades’, muitas delas frutos de esbulho e violências contra os povos tradicionalmente ocupantes dessas terras, e outras tantas oriundas de grilagem”, afirma a CPT, destacando ainda os números da violência agrária no Brasil.  

Após classificar a proposta do presidente como “irresponsável”, a entidade ressalta que, entre os anos de 1985 e 2018, por exemplo, 1.938 trabalhadores foram assassinados em conflitos no campo, num total de 1.466 ocorrências registradas pela própria Pastoral, que anualmente lança um relatório temático sobre o assunto.  

A CPT sublinha ainda que os crimes têm histórico de impunidade. “Dessas ocorrências, somente 117 responsáveis pelos assassinatos foram a julgamento, tendo sido condenados apenas 101 executores e 33 mandantes. Por esses números, vê-se que o ‘excludente de ilicitude’ já existe na prática”, critica a entidade, numa referência à expressão legal utilizada por Jair Bolsonaro.

Legislação

Do ponto de vista técnico-jurídico, o excludente de ilicitude diz respeito às hipóteses em que qualquer pessoa pode cometer um crime sem ser punido por ele, como é o caso da legítima defesa, entendida como uma situação em que uma pessoa está prestes a sofrer alguma agressão e reage diante dela. Pela legislação, casos como esse devem ocorrer sob uso moderado dos meios que sejam eventualmente necessários para evitar a agressão.  

O advogado criminalista Allan Hahnemann Ferreira, professor do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que o Código Penal prevê ainda outras situações para o excludente de ilicitude, como, por exemplo, o estrito cumprimento do dever legal para casos específicos relacionados à atuação das forças de segurança, mas não enquadra nesse instituto casos relacionados à proteção da propriedade.

“A fala [de Bolsonaro] vem num contexto extremamente punitivo e coloca a propriedade acima do próprio bem vida, que é o bem supremo protegido pela Constituição”, acrescenta Ferreira.

Contexto  

A declaração de Bolsonaro se conecta com o histórico reacionário do presidente no que se refere à lida com os movimentos populares, em especial com os segmentos do campo.

Durante a campanha eleitoral, por exemplo, o líder do PSL, então candidato, defendeu que as ações do MST fossem classificadas como “terrorismo” – proposta que hoje tramita no Congresso Nacional por meio de diferentes projetos de lei.  

Mas a nova manifestação do presidente também vai além, tendo como pano de fundo uma tentativa de fortalecimento da relação com a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), conhecida popularmente como “bancada ruralista”.   

O grupo, que reúne deputados e senadores ligados ao agronegócio, atuou como apoiador oficial da campanha de Bolsonaro em 2018 e ajuda a dar sustentação política ao governo, participando ativamente da gestão de diferentes formas, com destaque para o Ministério da Agricultura (Mapa), capitaneado pela ruralista Tereza Cristina, ex-presidenta da FPA.  

Nestes primeiros meses de gestão, a relação entre o núcleo duro do governo e os ruralistas foi marcada por ruídos. Entre outras coisas, porque a aproximação do presidente com os Estados Unidos atingiu os interesses da FPA no que se refere às relações comerciais com a China, país opositor ao de Donald Trump, e também por conta da ideia de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém.

Proposta por Bolsonaro em meio à troca de afagos com o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a mudança incomodou os ruralistas por conta do risco que traria ao rentável comércio internacional do grupo com os países islâmicos, para os quais o Brasil exporta carne bovina e frango. O negócio movimenta mais de US$ 3 bilhões ao ano.

A declaração de Bolsonaro pela liberação de punição a proprietários rurais em situações de conflitos de terra vem ao mesmo tempo em que o governo trabalha também outras medidas de interesse da bancada ruralista. Segundo informação do próprio presidente, na próxima semana, o governo deverá pautar, na Câmara, uma medida que pretende liberar a posse de arma de fogo para produtor rural em toda a área correspondente a sua propriedade.

“Ele tenta, com esse tipo de declaração, buscar apoio para os projetos impopulares dele na bancada ruralista, que é uma bancada grande, conservadora e bastante reacionária”, interpreta o deputado João Daniel (PT-SE), atuante nas pautas agrárias na Câmara.

Também estão no radar do governo outras medidas destinadas aos ruralistas, como um pacote bilionário – ainda em fase de elaboração – para tratar de empréstimos e renegociações de dívidas do setor.   

Edição: Daniel Giovanaz