Se propina, desvio de recursos públicos e nepotismo atravessam o noticiário e colocam o Brasil como 105º em percepção da corrupção num ranking com 180 países, a direita pró-coturno busca colar o bordão “na ditadura é que era bom” também no que diz respeito ao trato da coisa pública. Pesquisas e novos documentos mostram que essa afirmação não passa de fake news. História ora contada pela metade, ora falsificada mesmo.
“Ao contrário do que se difunde no senso comum, o período de 1964 a 1985 foi fértil em denúncias de ilegalidades envolvendo empresas e o Estado no Brasil”, afirma o historiador Pedro Henrique Campos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). “Mesmo com os mecanismos de controle e investigação amordaçados, ficaram famosos casos de como o relatório Saraiva, Capemi, Coroa-Brastel, Halles, Delfin, BUC, Lume, Luftalla, Áurea, Atalla, TAA, Dow Chemical, projeto Jari, Petropaulo, Brasilinvest”, entre outros.
O variado cardápio apresentado envolve cobrança de propina em obras de energia; desvios na retirada de árvores secas do futuro lago de Tucuruí; “pedágio” em empréstimo da Caixa Econômica Federal a empresário; irresponsabilidade financeira com intervenção caridosa; superavaliação de bens dados em garantia para empréstimo bilionário; injeção de dinheiro público em empresa falimentar; e assim vai.
Outros escândalos envolvendo de forma promíscua o público e o privado passaram por formação de quadrilha de contrabando por oficiais, mordomias nas casas e rotinas ministeriais, associação ao tráfico e extermínios.
Campos lista fatores que teriam desencadeado uma “tempestade perfeita” que multiplicou os casos envolvendo apropriação ilícita dos recursos do país: “a formação e majoração dos fundos públicos; o aparelhamento das agências estatais por quadros empresariais que apoiaram o golpe e o regime; e a censura aplicada ao parlamento, à imprensa, aos mecanismos do Estado – Judiciário, Polícia Federal, Ministério Público –, aos movimentos sociais e à oposição política”.
O historiador explica que, nesse sistema político-institucional menos complexo e multipolar que o atual, empresários movimentavam-se de forma bem direta para obter medidas e políticas favoráveis. “Muitos empregavam oficiais nos quadros das suas empresas, para ‘abrir portas’ em certas agências estatais dirigidas por agentes das Forças Armadas, e era comum também toda uma ação junto ao poder Executivo e aos militares na época.”
Não que inexistissem instâncias ou forças-tarefas de combate aos “malfeitos”. “O próprio regime afirmava em vários documentos e situações públicas que o seu objetivo era afastar a subversão (‘comunista’) e a corrupção do país”, lembra o pesquisador. “No entanto, esse combate era parcial e seletivo. Os julgamentos e punições da Comissão Geral de Investigações (CGI) serviam aos propósitos políticos do regime e seus condutores.”
Ele ressalta que figuras públicas que eram ou se tornaram adversárias do regime, como Juscelino Kubitschek e Adhemar de Barros, chegaram a ter seus direitos políticos cassados sob acusação de ter praticado crimes. “Ao mesmo tempo, de acordo com [o jornalista] Elio Gaspari, o Serviço Nacional de Informações (SNI) grampeava Delfim Netto e notava uma série de irregularidades envolvendo o ministro, empreiteiras (sobretudo a Camargo Corrêa) e frigoríficos, dentre outros grupos econômicos. Mesmo assim, não ocorreu qualquer punição.”
Casos não revelados
Documentos reunidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e suas equivalentes municipais ou estaduais, revelados pelo Wikileaks ou obtidos pela imprensa, trazem à luz negociatas que permaneceram três, quatro ou até cinco décadas no subsolo.
Entre os exemplos, um telegrama enviado a Washington, em março de 1984, pela embaixada dos Estados Unidos dá notícia de “vários escândalos que lançam nuvens” sobre o governo João Baptista Figueiredo (1979-1985), o último general da fila.
“Em um nível geral, muitos brasileiros médios acreditam que o governo federal seja corrupto”, sublinha o relato. Nele, os diplomatas observam que um dos alvos de insatisfação era o contingente de militares aposentados e amigos alojados em altos cargos nas centenas de empresas paraestatais.
“Embora não tenha havido um aumento da indignação pública, as percepções e acusações de má conduta mancharam o governo em todos os níveis, reduziram a fé pública em suas habilidades e é, sem dúvida, um fator para acelerar o retorno dos militares aos quartéis.”
A análise conjuntural acrescenta que a percepção do problema pelo povo dava “algum ímpeto” às eleições diretas. “E embora o PMDB e outros partidos de oposição não sejam vistos como muito melhores que o governo, uma eleição direta pelo menos daria ao brasileiro comum a chance de expulsar esse conjunto de vagabundos” – palavras dos diplomatas. Não seria daquela vez que as brasileiras e os brasileiros decidiriam o titular da cadeira presidencial, mas a campanha Diretas Já levou multidões inéditas às ruas e apressou a conclusão da “abertura lenta e gradual”.
Queima de arquivos
Sangrias foram estancadas com queima de arquivo, ameaças e mortes. O diplomata José Jobim foi riscado do mapa uma semana depois de comparecer à posse de Figueiredo e de comentar que preparava um livro de memórias com revelações sobre fraudes na construção da hidrelétrica de Itaipu.
Saber demais também custou a vida do jornalista Alexandre von Baumgarten. Assassinado em 1982, na esteira do escândalo da Agropecuária Capemi, ele deixou um dossiê acusando a cúpula do SNI, do qual era colaborador, de planejar sua morte. Baumgarten tinha conhecimento sobre denúncias dirigidas ao chefe da agência central do órgão de espionagem, Newton Cruz, e outros agentes.
“Certamente sabemos hoje uma parte extremamente reduzida dos casos envolvendo corrupção, favorecimento de empresas, fraudes e envolvimentos de empresários com o regime ditatorial brasileiro”, pontua Pedro Henrique Campos. O apoio de grupos econômicos à repressão a trabalhadores é um dos eixos cujas sombras vão sendo superadas aos poucos.
“Há hoje documentos que atestam que a Volkswagen do Brasil produzia fichas e relatórios das atividades políticas dos seus trabalhadores e enviava aos órgãos repressores”, conta. “Além disso, reportagem recente do The Intercept indica que a Fiat fazia algo similar com os funcionários da sua fábrica em Betim [MG] em meio às greves ocorridas no final da década de 70. Por fim, há o caso notório da Operação Bandeirantes, a Oban, em que, segundo os estudos, algumas empresas contribuíam financeiramente ou proviam outras formas de apoio ao terrorismo de Estado em São Paulo. Tudo indica que esses casos são uma espécie de ‘ponta do iceberg’”.
Cimento, aço e desvios
Autor do livro "Estranhas catedrais – As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar", Pedro Henrique Campos afirma que o regime colocou em outro patamar esses grupos e a “relação especial” que mantinham com o Estado desde seu surgimento, entre as décadas de 30 e 50. O setor de infraestrutura participou ativamente do golpe de 1964 por meio do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes).
Foi uma era marcada por obras públicas de grandes dimensões, com projetos tocados sempre sob a justificativa do desenvolvimento nacional. Além das duas mega-hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, datam daqueles dois decênios as rodovias Transamazônica e Perimetral Norte, as usinas nucleares Angra 1, 2 e 3, a Ponte Rio-Niterói e o Aeroporto Internacional do Galeão.
A criação de novos nichos para o setor de infraestrutura ampliou e diversificou o portfólio dessas companhias. “Antes, elas eram empreiteiras rodoviárias”, narra o professor. “Após o golpe, adquiriram experiência na construção de metrôs, usinas hidrelétricas e nucleares, grandes aeroportos e obras industriais, como parques frigoríficos, refinarias e polos petroquímicos. No final da década de 60, começaram a atuar fora do Brasil e se tornaram grandes multinacionais.”
O maior salto coube à Odebrecht, que passou da 19ª posição no ranking nacional do setor em 1971 para a 3ª em 1973, mantendo-se no topo desde então – e protagonizando grandes escândalos e projetos, sobretudo nas últimas décadas.
Na cola da Petrobras, a Odebrecht deixou para trás o alcance regional e lançou-se a uma ascensão vertiginosa sob as duas presidências de Ernesto Geisel – à frente da estatal e, depois, da República. A nova envergadura foi alcançada com a construção da sede da petrolífera e, em especial, a vitória nas concorrências para construir Angra 1 e o terminal 1 do Galeão.
O pesquisador afirma que gigantes do setor consolidaram na ditadura o sistema baseado no pagamento de propinas – as que mais cresceram teriam sido as que mais souberam se corromper – e, no caminho da redemocratização, foram se adaptando. Conforme as instituições passaram a ter seu funcionamento parcialmente normalizado, as construtoras (e outras fornecedoras) mudaram estrategicamente sua “metodologia”, recorrendo também a parlamentares – em especial na tramitação do orçamento –, à imprensa e a outros meios e atores para “emplacar” obras e obter contratos e aditivos.
“As pesquisas recentes e o que eu pude verificar no meu estudo indicam que essas empresas compõem o aparelho estatal, integram sua dinâmica, participando das ações e dos trâmites estatais, com uma posição inclusive privilegiada na correlação de forças e na hierarquia dos grupos e frações que integram o pacto político”, explica o historiador.
Caráter sistêmico
“A corrupção não é uma exclusividade do período democrático”, reforça a economista Leda Paulani, “existe desde sempre”. Ela acrescenta que, pela falta da transparência, regimes ditatoriais constituem ambiente propício para a prática.
“Há uma fábula literal de que, se a concorrência funcionar, os ganhos de cada um vão ser os justos. Ela não tem embasamento na realidade. O próprio sistema tem um DNA corrupto. Se você for para o lado marxista, o lucro já é uma espécie de apropriação indébita”, analisa a professora titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
Para a docente, a crise global de 2008 colocou uma zona cinzenta sobre um dos entendimentos correntes de corrupção: a diferença entre o que é permitido e o que não é. “Aquelas agências de risco sabiam claramente o que estava se passando, aqueles ganhos insustentáveis, mas continuavam colocando o chamado triplo A para certos tipos de papéis [de crédito imobiliário]. É a ilicitude feita pelo sistema”, define. A classificação “AAA” é a chancela mais alta para um título, ou seja, a avaliação de que ele representa um negócio altamente seguro.
Paulani assinala, ainda, o direcionamento político a que está sujeito o rigor na apuração e na classificação dos atos: “A história mostra, no caso do Brasil, que toda vez que você tem governos mais progressistas começa a discussão sobre corrupção. Você já sabe em quem vai cair”, disse a economista se referindo ao governo de Getúlio Vargas.
*Colaborou Antonio Biondi
Edição: Aline Carrijo