O que justificaria fuzilar um carro com 80 tiros? Que nível de periculosidade teriam as pessoas que estavam dentro deste carro? Seriam “terroristas”? “Inimigos do Estado”? Membros de uma perigosa facção ou milícia criminosa?
A resposta, obviamente, é não. Era uma família como outra qualquer, comum, indo a um chá de bebê em um domingo.
Importante sublinhar uma singularidade: era uma família negra. O motorista do carro, o músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, foi assassinado na frente de sua esposa e filha por militares do Exército.
Os autores do disparo alegaram que tudo não passou de um “engano”. Um “engano” de 80 tiros! Não, não foram 15 ou 29 ou 43 tiros. Tampouco foram 56 ou 62. Todos esses números são, em si mesmos, absolutamente desproporcionais.
Por motivos que precisam ser devidamente investigados, os militares do Exército decidiram fuzilar o carro com a família de Evaldo com 80 tiros!! Talvez usassem menos de 30 tiros se o carro em questão fosse um tanque de guerra de um exército inimigo. Como explicar racionalmente tamanha violência?
A violência institucionalizada das forças policiais e militares é a violência do próprio Estado. Por definição, somente o Estado tem o monopólio legítimo da violência institucionalizada e tal violência deveria servir para proteger os cidadãos de qualquer ameaça a sua integridade física e bem estar. Tudo isso em teoria.
Na prática o que ocorre é o uso indiscriminado desta violência institucionalizada do Estado para ameaçar, prender, aterrorizar e, no limite, assassinar pessoas e grupos considerados “inimigos internos”.
Os 80 disparos contra um carro que conduzia uma família negra e assassinou mais um homem negro não foi um “acaso”, um “engano” ou um “incidente”, conforme dito por Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública do atual governo, em entrevista no programa Conversa com Bial. Alguém precisa dizer ao ministro que não existem fuzilamentos “incidentais” em nenhum lugar do planeta!! Fuzilamentos ocorrem por motivações muito específicas!
Não se sabe ainda quem atirou ou quantos atiraram. O fato é que a raiva, o ódio, a indiferença de quem apertou os gatilhos resultam de uma cultura política e social perversa, atravessada de cabo a rabo pelo racismo estrutural que caracteriza a sociedade brasileira.
Ser negro ou negra em uma sociedade como essa é viver permanentemente sob estresse e medo de ser assassinado em qualquer momento ou em qualquer lugar “por engano”. No início deste ano um jovem negro foi sufocado até a morte por um segurança do supermercado Extra, também no Rio de Janeiro.
De acordo com o Atlas da Violência, lançado em 2018, 71,5% das pessoas assassinadas no Brasil em 2016 eram pretas ou pardas. O estudo mostrou também que entre os anos de 2006 a 2016 a taxa de homicídios de negros aumentou em 23,1%. São índices de uma guerra civil não declarada!
O atual governo foi eleito com a promessa de combater mais energicamente criminalidade, além de criminalizar os movimentos sociais. E neste sentido os discursos apontam para a velha lógica racista e genocida de atirar primeiro e perguntar depois. É verdade que essa máxima do racismo policial brasileiro não foi inventado agora. Os movimentos negros e entidades ligadas aos direitos humanos já denunciavam a violência policial desde pelo menos os anos 70! No entanto, com um governo de extrema direita no poder e com profundo sentimento antipovo, tudo indica que o que era pior pode piorar ainda mais.
O Pacote Anticrime defendido por Sérgio Moro tem sido apontado por especialistas em segurança pública e parlamentares ligados ao tema como uma verdadeira “licença para matar”. “Licença para matar” pobres, negros/as e, sobretudo, jovens negros!
Evidente que é preciso uma profunda reflexão sobre propostas de políticas públicas na área de segurança pública e isso tem sido feito por inúmeras organizações da sociedade civil nos últimos anos. No entanto, os interesses em jogo mudaram completamente de lado e quem vai pagar o (altíssimo) preço por esta “nova” segurança pública sabemos muito bem quem são. Os riscos de presenciarmos a continuidade do terror racial e da lógica do genocídio contra a população negra são patentes.
Por fim, quero propor uma pequena experiência para ser feita por você em sua casa, no trabalho, na escola/universidade ou no seu bairro. Conte até 80, da forma mais pausada que puder. Isso mesmo: um, dois, três, quatro, cinco…. 43, 44, 45…. 65, 66, 67…
Pense que cada número contado é uma bala atravessando um corpo negro. Cada bala vai dilacerando a pele ou a cabeça de uma pessoa negra.
Tente chegar ao número 80.
Pois bem. Se ao chegar ao número 80 você não sentiu nada, nenhuma repulsa, nenhum enjôo, nenhum arrepio em viver em um país que trata com este nível de brutalidade seus cidadãos negros/as é porque estamos falando de coisas complementamente diferentes.
Fico aqui me perguntando o que queriam realmente matar com esses 80 tiros.. Queriam matar um homem negro e sua família ou nossa humanidade inteira?
*Márcio André dos Santos é poeta, professor, cientista político e ativista do movimento negro.
Edição: Daniela Stefano