O governo federal começou a articular ideias para reforma do sistema tributário brasileiro. O secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, afirmou nessa semana que sua equipe prepara uma proposta de unificação de, pelo menos, cinco tributos federais (PIS, Cofins, IPI, IOF e CSLL). Além disso, pretende-se levar ao Congresso um projeto de emenda constitucional que unifica o imposto único federal com o ICMS (estadual) e o ISS (municipal).
Segundo o especialista em direito tributário, Marciano Buffon, a proposta do governo trata de resolver um dos enclaves fundamentais dos problemas relacionados ao sistema tributário no Brasil, sua complexidade. No entanto, ignora o maior de todos os problemas, a chamada regressividade, que significa que o trabalhador com menor salário paga, proporcionalmente, mais impostos do que os mais ricos.
Essa distorção ocorre pelo fato de a maioria dos impostos recolhidos no Brasil incide sobre o consumo. Dessa forma, proporcionalmente, as famílias com rendas menores gastam mais com o consumo de produtos de primeira necessidade.
“É inconcebível que os 55 milhões [de pessoas] que vivem com 600 e poucos reais por mês transfiram para o Estado brasileiro metade dessa renda pagando os tributos indiretos sobre o consumo”, conclui Buffon.
Para Paulo Gil, presidente da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Unafisco), a mera simplificação do sistema tributário pode significar apenas uma maquiagem do problema maior.
“Quando se fala em simplificação, o que se está buscando na verdade é um forma de concentrar ainda mais os tributos sobre os bens e serviços. Então, é preciso deixar isso bem claro. Quando se fala em simplificação também, como a palavra carrega um conteúdo positivo, se esconde que se está querendo transferir o ônus de pagar os tributos dos grandes grupos econômicos, das pessoas físicas mais ricas, para os mais pobres”.
Paulo Gil alerta ainda para outro problema que não pode ser desconsiderado no debate sobre a unificação tributária.
“Ao unificar impostos de várias esferas e impostos e contribuições sociais, por exemplo, PIS e Cofins, essa proposta vai afetar o financiamento da seguridade social. A nossa seguridade social, como previsto nos artigos 194 e 195 da nossa Constituição, tem fontes vinculadas. Esses recursos são considerados um patrimônio dos trabalhadores e são protegidos pela Constituição”.
Reforma solidária
Os especialistas consultados pelo Brasil de Fato concordam na afirmação de que o sistema tributário brasileiro é um motor de desigualdades. E foi essa preocupação que reuniu diversas entidades em 2018 em torno de uma proposta de reforma do sistema de tributos, que foi apresentada aos candidatos à Presidência da República durante as eleições.
“A proposta consiste basicamente na redistribuição da carga tributária. Essa redistribuição é da ordem de 5% do Produto Interno Bruto, ou seja, de toda a riqueza que o Brasil produz no ano. Ou seja, o equivalente a 5% das riquezas brasileiras, sob a forma de tributos sairia dessa base de tributação sobre bens e serviços, deslocada para renda, sobretudo, e para patrimônio”, explica Gil.
A proposta inclui ainda uma reforma do imposto de renda, com a isenção para trabalhadores com rendimentos de até quatro salários-mínimos, o estabelecimento de novas alíquotas que poderiam chegar até os 40% para aqueles que recebem mais de 40 salários-mínimos mensais, e uma contribuição adicional para rendimentos superiores a R$ 1 milhão. Segundo Gil, a equipe do atual presidente Jair Bolsonaro não deu retorno.
Na contramão do mundo
Outro tema que deve passar longe da proposta de reforma do governo Bolsonaro é a taxação de grandes patrimônios e heranças. Temas que, segundo Buffon, nunca foram tabus nas maiores economias do mundo, inclusive as de tendência mais liberalizantes.
“Não é uma pauta socialista a tributação das heranças. Países como os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, tributam fortemente as heranças. Nos Estados Unidos chega a 40% do valor da herança, a partir de um determinado patamar”.
Na direção contrária, o sistema tributário brasileiro permite, por exemplo, que a distribuição de lucros e dividendos de grandes empresas tenham isenção de imposto, como explica Paulo Gil.
“A fratura exposta do nosso sistema tributário seria o fato dos mais ricos não pagarem imposto de renda. Porque os empresários, que são os mais ricos, estão isentos desde 1995. Então os sócios e acionistas nesse país, quando recebem seus lucros e dividendos, não precisam pagar um centavo de imposto de renda”.
Segundo Gil, é preciso desmistificar a ideia de que a carga tributária no Brasil é elevada. Para ele, é preciso discutir a distribuição dos impostos, entendendo sempre que, bem distribuídos e devidamente direcionados, eles podem significar, em contrapartida, o oferecimento de bons serviços públicos à cidadania.
“Nós tivemos um encontro internacional no ano passado aqui em São Paulo, e alguém do público perguntou a um palestrante dinamarquês se o candidato que prometesse baixar imposto se elegia na Dinamarca. E o palestrante disse que não. E disse: ‘Olha, na minha cidade, inclusive, o candidato a prefeito se elegeu dizendo que ele ia aumentar o imposto para prestar um novo serviço público que não era prestado. Então essa é a concepção do imposto. O imposto é uma contrapartida de se ter uma sociedade com um patamar civilizatório satisfatório, uma sociedade civilizada com direitos sociais amplos e universais”.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, também articula um projeto de reforma tributária e deve criar um grupo de trabalho no legislativo para discutir a proposta.
Edição: Aline Carrijo