Em carta apócrifa divulgada nesta segunda-feira (1), um grupo de diplomatas de carreira do Itamaraty repudiou as declarações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sobre o golpe militar de 1964.
“Um grupo representativo de diplomatas brasileiros vem manifestar repúdio a declarações do presidente da República e do ministro das Relações Exteriores que relativizam a natureza ilegal, inconstitucional e criminosa do regime de exceção instaurado no Brasil com o golpe de estado de 1964”, diz o documento.
O texto foi feito sob anonimato para evitar retaliações do governo. A composição do Ministério das Relações Exteriores é muito hierarquizada, desta forma, não é comum que diplomatas contestem o posicionamento de seus superiores.
A carta afirma que “declarações e atitudes dessa natureza, cada vez mais desmentidas por novas fontes documentais e sem precedentes na breve história da democracia inaugurada em 1988, violam os mais elementares compromissos que regem hoje a inserção internacional do Brasil e trazem danos graves à imagem do país”.
A publicação é uma resposta à uma determinação feita por Bolsonaro no último dia 25. Na ocasião, o porta-voz da presidência, General Otávio do Rêgo Barros, anunciou que o mandatário havia ordenado que os militares comemorassem o aniversário de 55 anos do golpe de 1964.
Já no domingo (31), o Planalto divulgou um vídeo comemorando a instauração do regime ditatorial. As imagens foram compartilhadas pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente. “Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares de 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”, afirmou Eduardo em uma publicação no Twitter.
Segundo os diplomatas, a ditadura “destruiu famílias, massacrou povos indígenas, estuprou mulheres, torturou crianças. Deixou profundas e deletérias marcas na vida institucional do país, cujas consequências para o efetivo respeito aos direitos humanos ainda hoje enfrentamos”.
Os diplomatas também repudiaram os elogios feitos por Bolsonaro ao ditador chileno Augusto Pinochet. Em diversas ocasiões o presidente saudou o governo militar liderado por Pinochet, que entre 1973 e 1990, assassinou 3,225 pessoas. Recentemente Bolsonaro também elogiou o ditador paraguaio Alfredo Stroessner.
“Estendemos nossa solidariedade aos nacionais paraguaios e chilenos, igualmente ofendidos por declarações do mandatário brasileiro em alusão elogiosa às ditaduras que também se instalaram nesses países”, afirmam os diplomatas.
Golpe foi “movimento necessário para que Brasil não se tornasse ditadura”
O documento é também uma resposta ao chanceler Ernesto Araújo, que na última quarta-feira (27) afirmou não considerar que houve um golpe de estado no Brasil. “Não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida em relação a isso”, disse Araújo.
Os diplomatas afirmam que as declarações “violam os princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, consagrados na Constituição Federal, tripudiam da memória das vítimas de um regime assassino”.
Confira a carta na íntegra:
“Um grupo representativo de diplomatas brasileiros vem manifestar repúdio a declarações do presidente da República e do ministro das Relações Exteriores que relativizam a natureza ilegal, inconstitucional e criminosa do regime de exceção instaurado no Brasil com o golpe de estado de 1964.
Declarações e atitudes dessa natureza, cada vez mais desmentidas por novas fontes documentais e sem precedentes na breve história da democracia inaugurada em 1988, violam os mais elementares compromissos que regem hoje a inserção internacional do Brasil e trazem danos graves à imagem do país.
A ditadura instaurada em 1964 cometeu crimes contra a humanidade, de forma sistemática e como estratégia para se manter no poder por mais de vinte anos. Assassinou, sequestrou e torturou opositores de diversas correntes ideológicas, entre eles lideranças políticas contrárias à luta armada. Perseguiu funcionários públicos que não se sujeitaram ao arbítrio, inclusive militares e diplomatas. Censurou as artes, o pensamento e a expressão da pluralidade brasileira. Arrancou de gerações de brasileiros os direitos políticos mais fundamentais. Destruiu famílias, massacrou povos indígenas, estuprou mulheres, torturou crianças. Deixou profundas e deletérias marcas na vida institucional do país, cujas consequências para o efetivo respeito aos direitos humanos ainda hoje enfrentamos.
As mencionadas declarações, que violam os princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, consagrados na Constituição Federal, tripudiam da memória das vítimas de um regime assassino. Estendemos nossa solidariedade aos nacionais paraguaios e chilenos, igualmente ofendidos por declarações do mandatário brasileiro em alusão elogiosa às ditaduras que também se instalaram nesses países. Cabe recordar que a Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei, dirigiu à diplomacia brasileira recomendações específicas, entre elas a de compreender como foi possível "se deixar capturar" pelo envolvimento direto na repressão, com graves consequências para as vidas de muitos cidadãos brasileiros (CVN, relatório final, p. 213).
Se em 1964 alguns líderes políticos aderiram ao golpe em seu primeiro momento, vinte anos depois foi Ulysses Guimarães quem resumiu em duas palavras o legado de duas longas décadas de arbitrariedade que vitimaram a sociedade brasileira e a humanidade. Da ditadura, temos apenas "ódio e nojo". Sobre esse sentimento erigiram-se as garantias fundamentais da Constituição de 1988.
Sobre essa base, apenas, legitima-se a ação internacional do Brasil, comprometida com a paz, os direitos humanos e a cooperação para o bem comum da humanidade, conforme os princípios elencados no artigo 4º da Constituição Federal.”
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira