A presença feminina nas esferas de poder de maior referência regional e nacional ainda está distante do patamar da equidade de gênero com os homens. É o que mostra um levantamento feito pela Procuradoria da Mulher no Senado nos primeiros meses de 2019.
Considerando os resultados das urnas em 2016 e em 2018, o percentual de participação das mulheres em relação ao número de cargos eletivos dos estados não ultrapassa, nas diferentes unidades federativas, um quarto do total. O levantamento é feito com base em dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A maior representatividade é a do Distrito Federal (DF), com 25% de mulheres, e a menor, a do Espírito Santo, com 8,6%. Os cargos considerados na pesquisa incluem as cadeiras de vereadoras; senadoras; deputadas estaduais, federais e distritais.
Para a pesquisadora Danusa Marques, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), os números suscitam uma análise reincidente: a baixa representatividade feminina é um problema relacionado à forma como a cultura política lida com a participação das mulheres nessa seara.
“A gente tem um problema de recrutamento político, de construção de carreira, de viabilidade mesmo das carreiras políticas [de mulheres], e isso tem a ver com um controle muito fechado dessas estruturas de poder de decisão pelos homens”, complementa a professora.
Se é difícil para as mulheres a conquista de cargos eletivos, mais dificultosa ainda é a chegada delas a funções de comando nos diferentes espaços de poder. Nas agências reguladoras nacionais, por exemplo, elas ocupam sete dos 46 postos de direção. Os dados incluem todas as autarquias do ramo, como Anac, Anatel, ANS e Anvisa.
Em outros recortes de análise, a baixa presença feminina em funções de comando se repete. No caso dos partidos políticos, apenas quatro (11%) das 35 siglas registradas no TSE têm mulheres na presidência da legenda. São elas: PT, PCdoB, MDB e Podemos.
Os dados também foram compilados pela Procuradoria da Mulher no Senado, cujo estudo, ainda em vias de publicação, mostra que o cargo de governadora, por exemplo, é um dos que mais têm hegemonia masculina na política: desde 1994 aos dias atuais, somente sete mulheres ocuparam uma cadeira de chefe do Poder Executivo estadual no país. Atualmente, apenas Fátima Bezerra (PT), governadora do Rio Grande do Norte, compõe a lista.
Danusa Marques frisa que, diante de um cenário ainda desigual em termos de oportunidades, as mulheres que atuam na política encontram, ao longo de sua trajetória, diferentes barreiras que travam a ascensão na carreira e dificultam especialmente a ocupação de cargos majoritários – governador, prefeito, senador e presidente da República –, que têm apenas uma cadeira em disputa.
“Se o padrão de sucesso é o de homem, o risco pra um partido, pensando racionalmente num cálculo de custo-benefício, de recrutar uma candidatura feminina é maior. O grande ponto é ter condições de competir, e aí as mulheres têm muitas desvantagens nessa competição porque ela é muito desigual”, afirma a pesquisadora.
Ministras
A ocupação feminina na cúpula do Poder Executivo federal também é historicamente baixa. O levantamento da Procuradoria mostra que, de 1989 a 2019, a presença delas teve destaque apenas nos governos dos ex-presidentes Lula (PT) e Dilma Rousseff (PT), que tiveram, respectivamente, 10 e 15 ministras. Entre os demais, a média de participação foi de duas ministras por governo.
É o caso da gestão de Jair Bolsonaro (PSL), por exemplo, que conta com duas ministras e 20 ministros. Para a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos na gestão de Dilma, a disparidade numérica entre os governos ao longo da história delineia também o espaço reservado às mulheres nos diferentes espectros políticos.
"[A participação feminina nos ministérios do PT] demonstra que as mulheres estão preparadas, estão com plena condição de exercício das funções. O que existe é uma linha política mais perversa, nos governos de direita, de desvalorização das mulheres, inclusive das que participam da mesma posição ideológica dos senhores que governam. O que esses homens estão buscando, na verdade, é uma reserva de espaço pra si próprios”, aponta.
Considerando os últimos mandatos presidenciais, quando comparado a outros países da América Latina, o Brasil (4,9%) aparece percentualmente em penúltimo lugar, à frente apenas das Ilhas Virgens Britânicas (0%), no histórico do número de ministras. O dado provém de levantamento realizado pelo Observatório de Igualdade de Gênero, ligado à ONU. A média de mulheres ocupando esse tipo de cargo na região é de 25,7%.
Na última sexta (8), durante um evento de comemoração do Dia Internacional da Mulher, Bolsonaro declarou que seu ministério estaria “equilibrado” porque, segundo ele, cada ministra seria equivalente a “dez homens”. A declaração provocou diversas reações.
Para Maria do Rosário, a sub-representação feminina em ministérios e demais cargos políticos cria referências e ganha ressonância em outros compartimentos da vida social das mulheres.
“Não é algo isolado. Isso que acontece nos espaços de poder repercute e acontece com todas as mulheres brasileiras quando elas sofrem todas as formas de discriminação no trabalho, quando são o principal alvo da reforma da Previdência, por exemplo. Então, esse ‘desempoderamento’ é uma forma também de superexploração de todas”, sublinha.
Avanços
Apesar da representatividade ainda baixa nos cargos eletivos e de comando, a coordenadora da Procuradoria, Rita Polli, sublinha que os resultados da eleição de 2018 permitem algum viés de comemoração.
Um dos destaques é o aumento da presença feminina nas assembleias estaduais, que foi de 35% no comparativo com 2014, segundo dados do TSE.
Na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), também houve ganhos: a ala feminina cresceu 51%, considerando o mesmo período. Com isso, o número absoluto de deputadas federais eleitas saltou de 51 para 77. Como a Casa tem um total de 513 cadeiras, o percentual de mulheres passou de 10% para 15%.
“Creio que esse espaço é resultado de muitos anos de resistência e também de ativismo [das mulheres]. Ainda existe um desafio muito grande pra nós, mas resistimos”, afirma Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira deputada federal indígena, eleita em outubro passado.
No Senado Federal, que tem apenas eleições parciais a cada quatro anos e renovou dois terços da Casa em 2018, o número de mulheres eleitas se manteve: foram sete entre os 54 nomes aprovados pelas urnas – o mesmo verificado em 2010, último pleito com escolha de dois terços das cadeiras do Senado.
Ainda assim, segundo Rita Polli, as candidatas eleitas comemoraram o saldo dentro da compreensão de que a manutenção do número foi possível graças a uma outra conquista: no ano passado, o TSE determinou a destinação de pelo menos 30% do tempo de TV no horário eleitoral gratuito e dos recursos do Fundo Eleitoral para as candidaturas de mulheres.
A decisão veio após uma provocação feita pela bancada feminina do Senado junto à presidência do Tribunal. De acordo com a coordenadora da Procuradoria, a nova regra fez a diferença no cenário da corrida eleitoral porque possibilitou também uma maior autonomia às candidatas.
“O [dinheiro] do Fundo Eleitoral foi [direto] para a conta da mulher, e não mais pro partido. Foi fundamental. As senadoras chegaram aqui e [disseram] ‘se não fosse isso, não estaríamos aqui’”, conta Rita Polli, acrescentando que ainda é comum as candidatas enfrentarem dificuldades, nos diferentes partidos, para obter garantia de financiamento para suas campanhas.
Empoderamento
A coordenadora aponta ainda que o cenário de crescimento da participação feminina nos espaços de poder tem estimulado o empoderamento das mulheres na ocupação desses cargos e também na defesa dos direitos de outras mulheres. Ela assinala que isso ocorre em diferentes espectros partidários e ideológicos.
É o caso, por exemplo, da vereadora Neca Trennepohl (PP), do município Não-Me-Toque, no interior do Rio Grande do Sul. No ano passado, quando estava no cargo de presidenta da Câmara Municipal, ela liderou o processo legislativo que levou à cassação do então prefeito da cidade, Armando Carlos Roos (PP), acusado de improbidade administrativa por oferecimento de cargos públicos em troca de serviços sexuais com mulheres da Prefeitura.
A mobilização feita pela vereadora em torno do caso levou a uma denúncia por parte do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul (MP/RS), que pediu o afastamento de Roos. O pepista nega as acusações e atualmente é alvo de um processo no âmbito da Justiça estadual, ainda sem sentença.
Ao receber as denúncias de assédio inicialmente no âmbito da Procuradoria da Mulher no Legislativo municipal, que havia sido criada por iniciativa da parlamentar meses antes, a vereadora, que é a única mulher a ocupar uma cadeira na Casa, precisou enfrentar sozinha aliados políticos e seu próprio partido, o mesmo do prefeito, para dar seguimento à denúncia.
O caso chegou à Câmara por meio de relatos de mulheres que se apresentaram como vítimas do então prefeito. Armando Carlos Roos foi cassado em agosto de 2018 após um julgamento com seis votos favoráveis à perda do mandato e três abstenções.
O desfecho do caso surpreendeu o município, que tem apenas cerca de 17 mil habitantes e uma cultura marcada por fortes traços patriarcais.
“Eu cumpri o que realmente me veio. Claro que nós temos muita coisa ainda pra trabalhar, mas Não-Me-Toque nunca mais vai ser a mesma porque as pessoas realmente tiveram um olhar diferenciado, porque hoje [acham que] com mulheres tudo podem, e não. Existem limites”, afirma Neca Trennepohl.
Essa matéria faz parte do especial Março das Mulheres, produzido pelo Brasil de Fato.
Edição: Aline Carrijo