No último fim de semana, mais um caso de violência contra a mulher chocou o país. A paisagista Elaine Caparróz, de 55 anos, foi espancada durante quatro horas, em seu próprio apartamento, no Rio de Janeiro, após um jantar. Ela e o agressor, Vinícius Batista Serra, de 27 anos, se conheciam há pelo menos oito meses, a partir de contatos nas redes sociais. "Ele não falava, ele só gritava e me xingava, e me dava vários murros. Eu tentava me defender, mas eu sentia os murros me acertando. A cada murro que ele me dava, eu pensava que ia morrer", declarou a vítima, em entrevista ao jornal O Globo, do hospital onde ainda permanecia internada até a sexta-feira (22), com inúmeras escoriações no corpo e fraturas na face.
O caso de Elaine Caparróz, registrado como tentativa de feminicídio, felizmente não resultou em sua morte, mas ilustra um quadro epidêmico do assassinato sistemático de mulheres no país, em um claro contexto de desigualdade de gênero. Um levantamento recente aponta que 107 casos de feminicídio foram registrados já este ano no Brasil, contando apenas as primeiras três semanas do mês de janeiro. O estudo foi feito pelo professor Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), com base no noticiário nacional, e divulgado na imprensa. Dados da pesquisa mostram que 68 casos foram consumados, resultando em assassinato, e outros 39 foram configurados como tentativas de feminicídio. Há registros de ocorrências em pelo menos 94 cidades, em 21 estados. Mais da metade dos episódios (55%) ocorreram no fim de semana, entre sexta-feira e domingo.
Outro dado alarmante: o Mapa da Violência de 2015, publicado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), revelou que cerca de 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Segundo o estudo, 50,3% das mortes violentas são cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros. Desde 2015, o feminicídio, assassinato de mulheres em decorrência de questões de gênero, é tipificado como crime hediondo no país, com penas que podem variar de 12 a 30 anos de prisão. Também do ponto de vista legal, a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, durante o governo do ex-presidente Lula, é considerada um marco importante no enfrentamento da violência contra a mulher. Mesmo com esse quadro normativo mais favorável, as estatísticas continuam deixando o Brasil entre os países mais violentos para as mulheres no mundo. Só em 2017 foram registrados 2.795 feminicídios no continente, de acordo com um relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Em termos absolutos, o Brasil lidera esta terrível lista, com 1.133 vítimas confirmadas, o que representa mais de 40% do total.
A explicação para essa violência estrutural contra as mulheres brasileiras está na formação social do país, explica a advogada criminalista Clarissa Nunes, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). "Somos um país que não trabalha sua memória, por isso a gente tende a ignorar como se deu a formação da mulher na sociedade brasileira. Falamos de mulheres que foram escravizadas, estupradas e tratadas como mercadoria durante muito tempo. E, por não trabalharmos nossa história, ela se repete tragicamente. A cultura de violência contra as mulheres é enraizada principalmente na questão econômica. Mulheres que até há pouco tempo eram escravizadas e hoje desempenham trabalhos informais na sociedade", argumenta.
Segundo ela, a autonomia financeira das mulheres ainda é muito restrita no Brasil, principalmente entre as mulheres negras, o que as coloca em um patamar de vulnerabilidade ainda maior. "Não à toa os dados mais recentes no Brasil demonstram que o índice de violência contra mulheres brancas diminuiu, enquanto o índice de violência de mulheres negras aumentou. A crise política e econômica que o Brasil vive atingiu (e ainda atinge) primeiro as mulheres. Elas seguem perdendo empregos, entrando no trabalho informal. Com isso, as mulheres vão cada vez perdendo mais sua autonomia e por isso acabam se mantendo em relações abusivas, que podem resultar no feminicídio", explica Clarissa.
Sobre a efetividade da legislação no país, como a Lei Maria da Penha, a advogada explica que faltam métodos que garantam a aplicação de medidas protetivas. "Tanto da aplicação, quanto agilizar a decisão na Justiça. Muitas vezes há pedido de medida protetiva, mas a Justiça demorou demais para conceder a medida e aí a mulher já apanhou novamente - ou pior, já morreu", aponta. Clarissa Nunes reforça também que são necessárias medidas de mais longo prazo, que ajudem a transformar a cultura de violência contra a mulher ainda existente no país e no mundo. "As crianças precisam ser educadas entendendo a formação social do Brasil. É necessário falar sobre gênero na escola, tanto para as meninas se compreenderem enquanto sujeitas da sua vida, quanto para os meninos entenderem que mulher não é objeto, não é inferior e nem é recipiente para se despejar ódio e desprezo", acrescenta.
Edição: Elis Almeida