"O CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] foi um lugar acolhedor, onde eles trabalharam a minha vontade de viver. Eu não tinha mais vontade de viver, só vivia em função da droga. Por meio do CAPS, estou conseguindo, graças a Deus, viver novamente. Com os tratamentos, fui adquirindo a mansidão, a tranquilidade. Consegui manter minha ansiedade e minha compulsividade, que tinha por causa da droga”.
O relato é de Damião Peres da Silva, 39 anos, que desde 2014 faz tratamento no CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD) III Antonio Carlos Mussum, em Jacarepaguá (RJ). A unidade atende usuários de álcool e outras drogas e, por se tratar do modelo III, garante leitos para hospitalidade noturna de até 15 dias.
Usuário de crack em tratamento, ele conta que, com o uso das medicações e tratamentos disponibilizados pela equipe do CAPS, vem conseguindo se manter lúcido. “Eles trabalham com amor. O pessoal estuda, se dedica para a área da saúde mental. Nós geralmente não temos oportunidade de sermos ouvidos. O que pensam da gente? Que a gente é maluco, que maluco não pensa... Nós também somos seres humanos. Temos diferenças, mas somos iguais”, desabafa Damião. “Se o CAPS vier a acabar, eu tô ferrado. [O vício] É uma doença. É uma situação de doença e as pessoas não entendem isso”.
Internação substituirá CAPS?
As políticas públicas para a saúde mental no Brasil parecem seguir rumos completamente opostos aos esperados por Damião, morador da Colônia Juliano Moreira -- região que abrigava um dos maiores polos manicomiais do Brasil antigamente, também em Jacarepaguá.
Uma nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde no início do mês trouxe à tona uma discussão pública sobre a abstinência como forma de tratamento e a possibilidade de volta dos manicômios. "Quando a gente fala em redução de danos, falamos em liberdade, em direito", argumenta Sarah Fonseca, coordenadora do Caps III Antonio Carlos Mussum. "Porque algumas [pessoas] não vão nunca se adaptar ao modelo de internação, de abstinência total. Mesmo assim, o Sistema Único de Saúde precisa dar conta do cuidado dessas pessoas. Elas também têm direito. Ao contrário, por exemplo, do que é uma comunidade terapêutica, que exige que as pessoas estejam em abstinência".
A partir das novas diretrizes, as comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos passam a compor as Redes de Atenção Psicossocial (RAPS), determinação que vai na contramão da Reforma Psiquiátrica. Implementada em 2001, a Lei 10.2016 extinguiu os manicômios e substituiu internações psiquiátricas compulsórias por um modelo de atendimento psicossocial integrado.
Entre as orientações da nota técnica, também constam a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia para o Sistema Único de Saúde (SUS), internação de crianças em hospitais psiquiátricos e abstinência como principal forma de tratamento de pessoas dependentes de álcool e outras drogas.
Embora o Ministério alegue que o documento não é uma consolidação de como a Política Nacional de Saúde Mental será, e sim uma discussão sobre como está, as movimentações do governo Bolsonaro sinalizam o retorno a políticas que por décadas foram responsáveis por inúmeras violações de direitos humanos das pessoas internadas em hospitais psiquiátricos.
Exatamente por esse passado sombrio, a compra de aparelhos eletroconvulsivantes foi amplamente criticada. “Há um grande consenso em relação ao movimento da luta antimanicomial, de usuários e familiares, que associam de forma muito direta esse tipo de terapia a processos de tortura. Isso não é uma opinião, é a partir da vivência que as pessoas tiveram da relação com o processo de internação nos manicômios”, afirma o psicólogo Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Defensor do tratamento aberto, Giannini esclarece que nos CAPS as equipes são multiprofissionais e atuam em projetos coletivos e singulares "para promover possibilidades de reintegração desse sujeito na comunidade“. Já as terapias com aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) são processos de impulsos elétricos que levam a pessoa à convulsão. "É um eletrochoque, tirando a máscara. Essa política exclui os saberes mais integrados", pondera o psicólogo.
Damião também está preocupado com a possibilidade de alteração no seu tratamento e de tantos outros usuários que necessitam de um atendimento psicossocial integrado. “Imagina só eles voltarem a fazer o eletrochoque como terapia? Isso é tratamento desumano, tratamento do Hitler da 2ª Guerra Mundial. Da época da ditadura. Ai o teu irmão, o teu parente, o teu amigo, vai ser tratado como? Ele tem uma doença e será tratado com eletrochoque, em pleno século 21”, critica o paciente.
Corte de verbas, ampliação de danos
Dados mostram que o modelo implementado no país após a reforma psiquiátrica passa por uma política de sucateamento e intensos cortes de recursos. Pela Portaria do Ministério da Saúde nº 3.659, publicada em 14 de novembro de 2018, mais de 300 convênios foram suspensos, o que significa o corte de R$ 77,8 milhões do orçamento para a saúde mental. Os motivos elencados na portaria para justificar a suspensão da verba são técnicos, como falta de entrega de prestação de contas no prazo e documentação.
Sem recursos e com as indicações da Nota Técnica do Ministério da Saúde, a Rede de Atenção Psicossocial, que inclui os CAPS, os Serviços de Residências Terapêuticas (SRT) e leitos de saúde mental em hospitais gerais, passa por um sério risco de desmonte e, consequentemente, à completa desassistência dos usuários.
“Essa portaria [3.659], no fim das contas, visa reduzir os CAPS e aumentar os leitos de internação, dar entrada dessas pessoas na internação. Se essas pessoas não são acompanhadas pelos serviços de saúde, certamente elas serão internadas. Se deixa de construir possibilidades de vida, de liberdade, de cidadania para essas pessoas. E passa-se, de novo, a excluí-las da sociedade”, analisa Sarah Fonseca, mestra em Atenção Psicossocial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Coordenadora do CAPS AD III Antonio Carlos Mussum, onde Damião é acompanhado, Sarah explica que o trabalho dos CAPS tem como desafio a construção da cidadania e, muitas vezes, é o único serviço ao qual essa população vulnerável tem acesso.
“O CAPS tem essa importância de pensar junto com essas pessoas quais são as potencialidades que ainda existem em suas vidas e desenvolvê-las. É o contrário, por exemplo, de um serviço de internação, que foca apenas no adoecimento, no potencial farmacológico. Temos um cuidado de base territorial, um cuidado que vai levar em consideração que as pessoas usam drogas por motivos muito distintos. É preciso levar em consideração os determinantes sociais”, argumenta Fonseca, denunciando que a política da saúde mental indicada pelo novo governo incentiva a reabertura de leitos manicomiais.
Cidadania é o foco
Os usuários dos CAPS participam de assembleias periódicas com os profissionais, para discutir quais as abordagens mais adequadas para os tratamentos individuais e coletivos. Os familiares também são convidados a participar desses momentos.
“A droga é um aspecto da saúde das pessoas que precisa ser cuidado, em consonância com outros aspectos. Pessoas que usam drogas tem outras questões e dentro do manicômio é difícil cuidar disso. As pessoas não estão inseridas no trabalho, na comunidade e na medida que você as apaga enquanto sujeito, inserindo em um leito [psiquiátrico], aplicando eletrochoque, isso reduz a possibilidade delas poderem se autodeterminar. A construção da cidadania, que é o foco da atenção psicossocial, faz inclusive com que a pessoa possa dizer de que forma ela quer ser cuidada. É um respeito ao seu direito”.
Para Damião, a volta dos manicômios vai ser a morte de muita gente. "Não só das pessoas que vão voltar ao manicômio, mas também das famílias. Infelizmente, as pessoas vão ficar doentes. Nos CAPS, o tratamento é em liberdade. O portão é aberto, você vai embora se quiser. A equipe estimula o tempo que você vai ficar. Eles te mandam pra casa. Tem estágios que o psiquiatra te libera pra trabalhar, tem momentos que não, por causa da medicação. Então, se sai de algo que era uma ditadura e passa a viver a democracia. Há o direito de escolher: você se trata ou não se trata, mas 70% das pessoas saem dali [CAPS] bem.”
Leitos psiquiátricos infantis
Na página 24 da nota técnica, o Ministério da Saúde discorre sobre a internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos com naturalidade, o que também gerou muitos questionamentos. Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia, classifica como “assombrosa” a proposta de leito psiquiátrico infantil.
Marina Domine, professora, também está em estado de alerta com a possibilidade de internação compulsória de crianças. Mãe de filho autista e de uma jovem com síndrome de asperger, Domine explica que crises severas ocorrem, mas a internação não é a saída.
“Uma internação compulsória vai fazer um dano muito maior porque eles têm ciência do mundo que eles estão. Se colocá-los em internação compulsória, em um hospital, os profissionais estarão capacitados para entendê-los depois da crise? Porque eles voltam ao normal e podem conviver. Não, eles não vão, porque ainda não tem uma capacitação para autismo”, critica.
Resultados positivos
O consumo de álcool contribui para mais de 3 milhões de mortesa cada ano e mais de 5% da carga global de doenças e lesões, de acordo com relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) lançado em 2018. É também um importante fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), entre elas câncer, doenças cardiovasculares, doenças transmissíveis (como tuberculose e HIV/aids, violência e lesões).
Em todo o mundo, o consumo de álcool é o sétimo fator de risco de morte prematura. Não por acaso, a redução em até 10% do uso abusivo de álcool até o ano de 2025 é uma das metas de desenvolvimento saudável assumidas pela comunidade global, incluindo o Brasil.
Para isso, a política de redução de danos testada na Holanda, em 1985, no Reino Unido, em 1987, na Suíça e na Espanha, em 1990, e na França, em 1994, tem demonstrado êxito no uso de álcool e outras drogas. Um levantamento da Universidade Pierre e Marie Curie, publicado em 2006, constatou que caíram as taxas de incidência de infecção por HIV e de mortes por overdose entre usuários de drogas injetáveis na França e na Espanha.
Embora sejam raras as experiências de redução de danos específicas para usuários de crack, o Brasil foi pioneiro em experimentos desse gênero. Em 1999, um estudo do professor Dartiu Xavier examinou os benefícios de oferecer maconha a usuários de crack. A pesquisa, que envolveu o acompanhamento de 25 usuários de crack por seis meses, demonstrou que 17 abandonaram o crack, quatro abandonaram o tratamento e os outros quatro não conseguiram reduzir o consumo da droga.
No ano de 2017, um trabalho do professor Michael-John Milloy, da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá, revisou os resultados de três estudos de longa duração, que acompanharam a trajetória de 300 usuários de crack no país. Desses, 122 usavam maconha como forma de conter seu desejo por crack. A revisão de Milloy concluiu que, depois de 30 meses aplicando essa estratégia, as chances de o usuário reduzir o consumo de crack eram 89% maiores.
Edição: Cecília Figueiredo