Até pouco tempo, o Brasil era um país sem inimigos. Mantínhamos boas relações com todos os países, independentemente das ideologias políticas de seus governos circunstanciais, como são todos os governos.
Lula se relacionava bem com Chávez e Evo Morales, mas também tinha excelentes relações com Bush, Sarkozy e com Juan Manuel Santos, o conservador colombiano.
Nosso soft power era respeitado no mundo inteiro. O Brasil era visto como um país moderador, negociador, pacificador, que contribuía de forma muito positiva para a conformação de uma ordem mundial multipolar, menos assimétrica e mais justa.
Sempre que havia um conflito, especialmente em nossa região, o Brasil era visto como o ator mundial capaz de moderar e articular soluções negociadas e pacíficas para a crise, em consonância com os princípios constitucionais que regem nossa política externa.
Desde a época do Barão do Rio Branco que nos tornamos especialistas na dificílima e delicada arte da negociação. Consolidamos nossas fronteiras sem disparar um único tiro.
Mas tudo isso está se perdendo.
Desde o golpe de 2016 e especialmente agora, com o governo do capitão, que jogamos às favas nossa tradição diplomática e nosso prestígio mundial e estamos nos dedicando, com afinco, a fácil e destrutiva tarefa de fazer inimigos e comprar brigas.
O pior é que são brigas que não são nossas. São brigas a nós impostas pelo império norte-americano.
Devido a uma opção ideológica e acrítica de adesão ao desastrado “trumpismo”, embasada em gente completamente ignorante, mais afeita à astrologia que à geopolítica, estamos criando atritos sérios com aliados e parceiros importantes.
Estamos criando fricções com a China, o principal comprador de nossos produtos, com o qual mantemos uma parceria estratégica muito densa, estabelecida desde 1993. No ano passado, exportamos mais que o dobro para a China do que para os EUA.
Estamos gerando tensões com a Rússia, nossa parceira no BRICS, país com o qual compartilhávamos o objetivo da construção de uma ordem multipolar.
Já compramos briga séria com os países árabes, vitais para nosso agronegócio, em razão da decisão oligofrênica de transferir nossa embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o que contraria toda a nossa tradição diplomática de apoio à solução dos “Dois Estados” para o conflito israelo-palestino.
Não bastasse, a submissão política e ideológica a Trump, acentuada pelo messianismo do nosso folclórico chanceler pré-iluminista, nos indispôs com o ambientalismo mundial, pois passamos a questionar as mudanças climáticas. Na visão delirante de Trump, compartilhada fervorosamente com nosso chanceler templário, o efeito-estufa é mito criado pelo “marxismo cultural”. Afinal, como todo o mundo sabe, Marx e Engels, no Manifesto Comunista, conclamavam os proletários do mundo a se unirem contra o dióxido de carbono.
Não há dúvida, portanto, que os interesses do Brasil no cenário mundial estão sendo seriamente lesados, em virtude de uma opção ideológica provinciana e desinformada. É o que dá quando se entrega o país a “estadistas” do baixo clero e a gente formada na “loucademia” de milícias.
O dano maior, contudo, é o feito à integração regional.
Além da célere desconstrução do Mercosul, sonho antigo das nossas oligarquias internacionalizadas, o Brasil embarcou numa cruzada insensata e suicida contra a Venezuela.
Em obediência canina a Trump, estamos apoiando ativamente a intervenção política, econômica e militar contra a Venezuela, mal-disfarçada de “ajuda humanitária”.
::: O que está acontecendo na Venezuela? :::
Evidentemente, só o mais rematado dos imbecis pode acreditar que os EUA estão realmente preocupados com ajuda humanitária e democracia. Não estão, nunca estiveram e nunca estarão.
Os objetivos foram claramente expostos pelo almirante Craig Faller, chefe do Comando Sul dos EUA, ao qual o Brasil oficial vergonhosamente se subordinou, em decisão inédita na nossa história, que sequer foi comunicada ao Congresso Nacional. Soubemos de tudo pelo Senado dos EUA.
Em sua exposição ao senado norte-americano, Faller deixou entrever que os objetivos da “ajuda humanitária” são basicamente dois. O primeiro, derrubar um regime “maligno” (sic), que é aliado dos grandes “inimigos” dos EUA, China e Rússia. Segundo, ter acesso privilegiado à maior jazida de petróleo do mundo.
Por isso, os EUA estão seriamente empenhados na derrubada de Maduro, que foi legitimamente eleito e não é o responsável pelo bloqueio financeiro, econômico e comercial que, em grande parte, provoca a “crise humanitária” que seus perpetradores querem agora cinicamente resolver.
Acontece que o golpe planejado com a autoproclamação de Juan Guaidó como “presidente interino” fracassou. Os EUA, que erram seus cálculos políticos com alarmante frequência, esperavam que a população e as forças armadas se sublevassem contra Maduro.
As forças armadas bolivarianas cerraram fileiras, ao menos por enquanto, para defender o governo constitucional e a população se dividiu, como sempre, entre opositores e apoiadores do regime. Guaidó, uma espécie de Temer improvisado, desconhecido por 81% dos venezuelanos, ficou com cara de fantoche ou “fantacho”.
Passa-se agora, à segunda fase do golpe, que envolveria ou poderia envolver ações militares em diversos níveis.
Craig Faller, aparentemente o novo comandante supremo das nossas Forças Armadas, por delegação inconstitucional, visitou Curaçao, Colômbia e o Brasil, de modo a assegurar um cerco militar ao regime bolivariano.
Assim, estabeleceu-se um tridente de “corredores humanitários” que cerca a Venezuela. Um vem de Curaçao, no Caribe, outro vem de Cúcuta, na Colômbia e o terceiro vem de Pacaraima, fronteira entre Roraima e Venezuela.
Ao mesmo tempo, o Comando Sul já tem importante força marítima, parte da Quarta Frota, operando no Caribe, perto da costa venezuelana.
O próximo dia 23 foi classificado como a data limite para que a “ajuda humanitária” possa entrar na Venezuela. Isso poderá ser a senha e a justificativa para ações mais contundentes.
Que ações poderiam ser essas é difícil saber de antemão.
O cenário ideal, para os EUA, seria contar com dissidências significativas dentro das forças armadas venezuelanas. É por isso que Trump está pressionando pessoalmente os militares venezuelanos a “aceitar a anistia” e derrubar Maduro. Nesse cenário, o Comando Sul, contando com ajuda de Colômbia e Brasil, teria seus objetivos muito facilitados.
Num cenário em que as forças armadas da Venezuela permaneçam fieis a Maduro, as coisas se tornam mais complicadas. Nesse contexto, contudo, as dissidências poderiam ser forçadas com provocações. Nesse sentido, as “caravanas humanitárias” jogariam papel essencial.
Seria muito fácil para os EUA, que têm pessoal especializado nesse tipo de ação, fabricar incidentes, envolvendo mortes, entre o pessoal da “ajuda humanitária”, inclusive brasileiros e colombianos, e as forças de segurança da Venezuela.
A partir daí, poderia se abrir a caixa de Pandora de um conflito armado, de consequências imprevisíveis.
Obviamente, os EUA, mesmo nesse caso, dificilmente envolveriam forças terrestres em ações abertas na Venezuela. O mais provável, caso realmente se estabeleça um conflito armado naquele país, é que o Comando Sul coordene “intervenções cirúrgicas” contra alvos militares fiéis a Maduro. Forças terrestres, se necessárias, viriam da Colômbia, ou mesmo, quem sabe, do Brasil.
De qualquer forma, independentemente da escala do conflito, ou mesmo que não ocorra um embate militar, trata-se de uma total loucura, que transformaria a América do Sul, uma região há muito pacificada, numa espécie de novo Oriente Médio, uma região em crônica instabilidade geopolítica. O mínimo que pode acontecer é um acirramento do conflito interno venezuelano ou mesmo uma guerra civil.
Maior loucura ainda seria participação do Brasil, ainda que indireta, nessa insensatez “trumpiana”.
O Brasil, principal beneficiário da integração regional, que visa criar um entorno pacífico e próspero, só tem a perder, tudo a perder, com essa loucura.
Nosso país vinha construindo relações bilaterais extremamente construtivas com a Venezuela. Dada a complementariedade de ambas as economias, exportávamos de tudo para nosso vizinho, com amplo superávit a nosso favor. Ademais, construímos a integração das infraestruturas fronteiriças, que tanto beneficiam o estado de Roraima e a região Norte do Brasil, inclusive com o fornecimento de energia elétrica proveniente da Venezuela.
Todo esse esforço de décadas está agora sendo jogado fora pela nau dos insensatos da armada Bolsoleone, estrategicamente subordinada ao Comando Sul.
Pelo andar da carruagem ou pela navegação confusa e precária, sem Norte, é provável que essa nau dos insensatos se transforme, em breve, na “Balsa da Medusa”, retratada no famoso quadro de Gericáult, a trágica embarcação fratricida, onde campeava o canibalismo.
*Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado.
Edição: Vivian Fernandes