Bruno Paes Manso é jornalista, pesquisador e membro do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP), responsável pela produção do Monitor da Violência, uma ferramenta que serve para mapear as situações de violações do direito à vida no Brasil.
Autor de livros sobre a consolidação das facções criminosas no Brasil, especialmente o PCC (Primeiro Comando da Capital), ele aceitou o convite do Brasil de Fato para comentar o chamado “pacote anticrime” apresentado na segunda-feira (4) pelo ex-juiz de primeira instância e agora ministro da Justiça, Sérgio Moro, bem como outros temas relacionados à segurança pública no país. Confira:
Brasil de Fato: Como você, como pesquisador da área avalia o anúncio do “pacote anticrime”?
Bruno Paes Manso: Eu acho que esse é um pacote que foi decepcionante em vários sentidos. Primeiro porque quando o [Sérgio] Moro foi chamado para assumir um superministério de segurança pública, justiça, sistema penitenciário, o [Instituto] Sou da Paz lançou uma nota nesse sentido e eu achei bem interessante. Ele [Moro] tem seis pastas sob seus cuidados. Tem uma Polícia Federal, uma Polícia Rodoviária Federal, um orçamento de R$ 19 bilhões que é um dos maiores da União, o Coaf, que passou a ser uma instituição desse ministério, e promete um plano segurança.
Então se imagina que será algo pensado, que trate dessas questões da gestão da polícia e tudo mais. Daí ele vem e apresenta um pacote muito relacionado à carreira dele no Judiciário, aos anos que ele passou naquela salinha de justiça, tentando condenar, muito focado nos trâmites do processo, quais são os problemas que os promotores e os juízes têm para condenar um réu, quais as facilidades dos advogados de defesa... Você percebe que é o mundinho dele no pacote. Então há uma série de filigranas, muitas vezes e que não conseguiu se despir da toga.
É o juiz pensando naquela conversinha com os promotores da Lava Jato. Ele não conseguiu perceber que o cargo que ele assumiu é um cargo político que tem que dar conta de tudo isso. Então ele não conseguiu tirar a cabeça desse mundinho do Judiciário que ele viveu nos últimos anos. Uma visão de mundo muito pequena, incapaz de perceber a complexidade do tema, de acompanhar o debate.
Como o Núcleo de Estudos da Violência buscou incidir sobre esse debate durante a campanha eleitoral?
Fizemos um debate com os candidatos em Brasília e chamamos todos eles e seus assessores de segurança pública para discutir redução de homicídios, redução do problema do feminicídio, a questão das facções e tudo mais. E o debate foi de altíssimo nível, mas o Bolsonaro sequer mandou um representante.
E o programa dele era muito tosco, chegava a se falar que os estados com mais homicídios eram os estados cujos partidos estavam ligados ao Foro de São Paulo, ao marxismo cultural, todas essas doideiras que temos visto hoje. Ou seja, não se prepararam. Então de alguma forma não é surpreendente. No caso da violência policial e a flexibilização da “excludente de ilicitude” e da “legítima defesa”, o Brasil vive um problema de violência policial que é muito sério. Foram mais de cinco mil homicídios [em 2018] praticados pela polícia, sob a alegação de legítima defesa, isso sem contar os casos dos grupos de extermínio e dos milicianos, ou seja, esses são os casos que as próprias polícias assumem como suposta resistência da vítima.
Essa é a polícia mais violenta do mundo. E qualquer lugar do mundo considera a violência policial como um problema de treinamento, de estratégia, um problema estrutural a ser controlado. Ninguém nas polícias, nos comandos de polícia acha que violência mostra qualquer tipo de qualidade de uma polícia. Você endossar essa visão de que a violência policial, de alguma forma, não é um problema ou que o policial tem que ser resguardado na sua forma de agir violento, é um retrocesso na discussão política, no debate político dos próprios comandos das polícias. Eles já vêm de alguma forma percebendo o problema disso.
Além de demonstrar desconhecimento do legislativo e do executivo, permanecendo ainda no seu mundo jurídico, há uma intencionalidade nesse pacote. O que se pode dizer sobre essas intenções por trás dessas medidas?
Eu acho que houve momentos de esperança, de crescimento, houve os 14 anos de governos Lula e Dilma, e posteriormente todo o debate que alguns chamam de golpe, outros de impeachment, mas eu acho que a política acabou sendo criminalizada e os políticos passaram a serem vistos, de alguma forma, como ladrões. E criminalizaram a política, tornando-a um local onde existem bandidos e mocinhos.
Esse tipo de discurso acabou fazendo parecer que a solução era a polícia, era o promotor, era o Ministério Público. Criou-se uma visão em torno da política, uma visão muito pejorativa, que fez a gente retroceder de uma forma imensa, anos e anos, e passamos a ver essas figuras como heróis. Não é a toa que, de repente, surge um capitão do exército, uma série de policiais são eleitos, um juiz é o salvador da pátria, um promotor é o grande herói nacional, como se o que faltasse no Brasil fosse punição aos maus elementos.
Então veio todo esse discurso de guerra, de inimigos e aliados, que fez o Brasil entrar em um processo descivilizatório imenso.
Eu acho muito triste ver figuras importantes, como a figura histórica do Lula, que tem uma história, que abriu e construiu o sonho de muita gente, mais do que o ex-operário, é o retirante nordestino, que veio para São Paulo, para um grande centro e virou um líder de massas, que se comunicava de uma forma inédita e muita gente se viu nele, ter esse desfecho.
Isso também criou muito mal-estar e muita raiva de pessoas que estavam se sentindo ameaçadas, porque são 500 anos de uma certa história que é estável e que não mudou. Então de alguma forma ele representa essa mudança. Praticou erros, e eu acho que isso também é inegável, acho que houve vacilos do PT, houve vacilos do próprio sistema eleitoral da nova República, desse desafio de conseguir votos de milhões de brasileiros, comunicação em massa, fazer campanha, todos esses acordos com grandes empresas acabou virando uma praxe do sistema político-democrático, então isso acabou também dando margem e poder aos juízes e aos promotores a mexerem com essas peças e o Lula virou o grande bode expiatório.
Você vê a raiva de algumas pessoas contra o Lula e é uma coisa descompensada. Então o cara tem que morrer na prisão, não pode receber visita, não pode ir no enterro. Essa é uma coisa que diz muito sobre o Brasil, diz muito sobre 500 anos de história, diz muito sobre os conflitos de anos e anos, da história da escravidão, dos índios, da colonização, todas essas raivas mal resolvidas, diz muito sobre a gente.
Em relação à possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, que também consta no pacote de medidas do Sérgio Moro, isso já provoca hoje um efeito no sistema penitenciário para além da questão específica do ex-presidente Lula. Como você avalia esse tema?
Eu não sou do ramo do Direito, tento observar a coisa a partir de um ponto de vista mais sociológico, mais político. Mas eu acho que os dois lados do debate têm argumentos interessantes, importantes. Hoje a gente tem muita prisão preventiva no Brasil. Basicamente, as prisões no Brasil são em flagrante e as cadeias estão lotadas graças ao trabalho das polícias ostensivas, que prende nos bairros pobres e nas favelas pessoas praticando crimes em flagrante. Então é basicamente a forma de funcionar essa indústria de aprisionamento. Não existe investigação, não existe uma polícia que investigue, que tenha capacidade de compreender como é que funciona a indústria do crime, quais são as rotas de funcionamento de drogas. Todo esse tipo de trabalho eles dizem não.
Você tem uma espécie de guerra permanente, um permanente enxugamento de gelo nas quebradas. Então, basicamente, as prisões preventivas são mantidas pelo juiz quando é pobre, negro, morador de periferia, fica preso, aguardando julgamento preso. Existe o argumento da inconstitucionalidade. A Constituição prevê a prisão só depois de transitado em julgado. Isso está muito claro na constituição. Pode-se dizer que, se comparado à maioria dos países do mundo, e eu acho esse argumento forte, essas diversas instâncias são excessivas no Brasil. Isso acaba dificultando a prisão e demorando muito para que o processo acabe.
Então, para que isso acontecesse, deveria haver uma emenda constitucional, deveria mudar a Constituição de alguma forma. O aprisionamento em segunda instância é um jeitinho do próprio STF e da Justiça legislar no lugar do legislativo. Mas talvez exista um problema real da lentidão e da forma como a justiça funciona no Brasil, eu acho que sim, a nossa Justiça é ineficiente, e eu acho que o debate é válido.
Mas eu acho que o mais grave disso tudo é o problema da prisão em si. Hoje são 800 mil presos no Brasil, para 300 e poucas mil vagas no sistema penitenciário. E quer se prender mais, e está se prendendo muita gente que não precisaria estar presa. E ao mesmo tempo, o crime nunca cresceu tanto, porque você vê todo o problema das facções, que é um problema sério, e muitas vezes, pelo excesso de presos, porque a partir do momento que você enche os presídios de forma descontrolada você fortalece as gangues prisionais, mais do que controlar o crime. Então eu acho que no momento a discussão deve ser sobre quem deve estar preso, quem não deve estar. Quais são os tipos de crime que merecem privação de liberdade, quais não.
Precisamos sair dessa bomba-relógio que está se armando, achando que todo mundo tem que estar preso. A prisão é uma desgraça que temos que usar muito excepcionalmente.
Sobre esse ponto relacionado ao excludente de ilicitude e à legítima defesa da polícia, quem esse tipo de medida pode afetar, que efeito isso pode gerar?
Eu tenho visto o Moro defender o projeto e ele é muito categórico e tenta se justificar. E eu acredito que ele acredita no que está falando de que não é uma licença para matar ou, pelo menos, ele não vê assim. Mas eu acho que é a cabeça pequena de um juiz que viveu enfurnado dentro de uma salinha, pensando em processos, que não compreende a complexidade da cena brasileira. Porque é o que a gente já disse: o Brasil tem a polícia mais violenta do mundo, foram mais de cinco mil mortos no ano passado. A gente não se cansa de ver casos de simulação de tiroteios, de simulações de suposta legítima defesa por parte da polícia. E isso, de alguma forma, historicamente, produziu um dos grandes problemas nossos de segurança pública que são as milícias no Rio de Janeiro, que era a polícia mais violenta do Brasil, historicamente.
E chegou-se a premiar policiais com mortes no currículo durante uma fase. E essa tolerância à violência, como se isso resolvesse o problema do crime de alguma forma, acabou dando um diferencial para os policiais, que era uma licença para matar, que deu poder a eles suficiente para que eles passassem a dominar o crime de forma inédita. Então hoje, as milícias, segundo estimativas do próprio Ministério Público do Rio de Janeiro, dominam 40% do território do Rio, decidem eleições, como a gente tem visto, tem um grupo especializado em assassinar inclusive autoridades.
A juíza Patrícia Acioli foi morta nos anos 2000, a Marielle é um caso trágico, que ocorreu durante uma ocupação militar. E a Marielle é morta um mês depois como se alguém falasse assim: “olha, pode vir toda a imprensa internacional, toda a imprensa nacional, todo mundo olhando pra gente, tem os militares, mas quem manda aqui é a gente”. Foi criado um crime que não se sente vulnerável.
Isso gerou muita preocupação quando houve a campanha eleitoral e o Bolsonaro, mantendo seu discurso, que é uma espécie de distopia miliciana, como se essa violência fosse resolver alguma coisa, e como se isso fosse algum tipo de solução para o Brasil. No México e na Colômbia, por causa dos cartéis mexicanos e colombianos, os grupos paramilitares se fortaleceram e passaram a ser um problema muito maior para o Estado porque eles têm capacidade de penetração nas instituições, e a gente tem visto isso. Eles conseguem eleger membros para o legislativo, para o legislativo municipal, para o legislativo estadual... Agora, foi eleito um deputado no Rio de Janeiro que durante a campanha, o Ministério Público pegou um grampo, no qual ele combinava com milicianos da Baixada Fluminense para deixar que só ele fizesse campanha para ele e para o Bolsonaro naquela região. E ele foi eleito. Então, de repente você tem uma votação do dia para a noite de um candidato que ninguém conhecia e vira governador em dois dias. Não estou dizendo que ele foi eleito por causa das milícias, mas e aí? O fato de eles dominarem 40% do território teve ou não teve influência? São dúvidas legítimas, porque a gente perdeu o controle, o Estado perdeu o controle para esses grupos. Isso tudo para dizer que o Moro não entendeu nada. Porque é justamente o controle desses grupos que a gente precisa estar atento. E não flexibilizar e dizer que está tudo bem matar.
A esquerda e os partidos progressistas em geral escorregam muito no debate da segurança pública, e muitas vezes cai no discurso punitivista. Quais são os pontos que os setores progressistas deveriam estar mais atentos?
Eu acho que é difícil esse debate porque as pessoas têm medo. E as pessoas, com medo, querem uma solução. Porque para você viver numa cidade, você tem que ter uma capacidade de prever o futuro, de planejamento, pensar médio prazo, você precisa saber o que vai acontecer, minimamente. Você não pode estar sujeito a, de repente, acordar às cinco da manhã para trabalhar, para ganhar um salário-mínimo no final do mês, e chegar no ponto de ônibus e alguém leva o seu celular covardemente. Isso gera muita indignação e muita revolta para alguém que se mata de trabalhar e acaba acontecendo isso. Então é um desafio você garantir cidades seguras e cidades solidárias, onde as pessoas tenham uma relação de confiança maior, fortalecer os laços sociais entre as pessoas, que o crime seja excepcional, que não seja um medo permanente.
O que eu acho intolerável e o que argumentamos no NEV, são os homicídios, por exemplo. 64 mil homicídios é um problema político sério. Então eu acho que a prioridade da segurança pública, em primeiro lugar, é a redução dos homicídios e a fragilização desses tiranos armados. Só que não é só com a polícia que se trabalha esse tipo de processo. A partir do momento que, diante dessa indignação e desse medo você começa a aprisionar um monte de gente, você produz os efeitos colaterais que a gente tem visto.
Essa não é uma realidade que começa agora, né?
Em 1968 surgem os primeiros esquadrões da morte em São Paulo. No Rio de Janeiro já tinham surgido em 1958. O homicídio passa a ser visto como uma ferramenta de controle e não como um problema. O homicida é o herói. O [Sérgio] Fleury, que era o chefe do esquadrão da morte em São Paulo tinha modinhas caipiras, falando como ele era herói, como ele era corajoso. A Polícia Militar passa a matar, muitas vezes, como se assim ela resolvesse algum tipo de problema. E é preciso repactuar isso, é preciso induzir esses grupos a pararem de agir de forma violenta. E a gente vê que, de alguma forma, é possível isso acontecer.
No caso de São Paulo, foram 18 anos de quedas sucessivas. Quando eu comecei a pesquisar, eu achava que não havia solução, porque eram 40 anos de crescimento. E houve formas de reduzir isso. Você não consegue acabar com o crime no Brasil ou em nenhum outro lugar do mundo. Você não vai conseguir acabar com o tráfico de drogas ou em nenhum lugar do mundo. Mas você consegue induzir os traficantes a não usarem a violência durante o tráfico no seu dia a dia, no cotidiano. Porque eles [os criminosos] são pragmáticos, são empresários do crime, é um pouco a história do crescimento do PCC. Tem muito dinheiro em jogo. E quando há homicídio em uma quebrada, por exemplo, e isso aconteceu em São Paulo em 2006, houve uma espécie de ocupação durante dois meses da polícia. Havia abusos de autoridades, violações de direitos. O que começou a acontecer foi que os traficantes ficavam dois meses sem vender. E começou a criar uma espécie de fala no crime, em São Paulo, de que “violência atrai polícia”. A gente fragiliza o poder deles pela grana, pela investigação financeira, pela compreensão de onde eles estão lavando dinheiro. Não é uma guerra diária nas quebradas.
Porque a partir do momento em que você prende a molecada, mata a molecada que vive nesses bairros, você cria um sentimento de raiva e de revolta que é justamente o sentimento que o PCC utiliza para convocar esses caras para as fileiras deles. O papo é assim: “Olha, eles querem nos exterminar, o Estado quer nos exterminar, ou nos confinar nessas masmorras. A gente morreu para o sistema, então a gente tem que se organizar e bater de frente com o sistema. Em vez da gente abaixar a cabeça e ser uns ‘zé ninguém’, a gente tem que bater de frente. A gente morre antes dos 25 anos mas bate de frente com o sistema”. Então nós produzimos os nossos homens-bomba que, na verdade, são formados por uma masculinidade suicida que prefere morrer antes dos 25 anos mas não abaixar a cabeça para o sistema. Como a gente constrói um tipo de sonho que concorre com esse discurso? Como é que a gente fala: “’Olha, isso é uma ilusão. Os caras estão te vendendo ilusão, você pode ser outra coisa. Você pode ser um cara respeitado de uma outra forma. Não caia nessa ilusão, porque você vai ser covarde muitas vezes, vai ser violento muitas vezes”. É esse tipo de complexidade com a qual a gente lida.. E é de convencimento, argumento, disputa, debate que a gente precisa.
Como você e o Núcleo de Estudos da Violência avaliam os impactos da medida de flexibilização da posse de armas no Brasil, recém-anunciada pelo governo de Jair Bolsonaro?
Quando eu trabalhava no Estadão, na época do Estatuto do Desarmamento, eu escrevi uma história de uma arma que tinha sido comprada por um empresário no Morumbi para se defender, pois ele se sentia vulnerável em uma mansão no Morumbi, mas a casa dele foi invadida e essa arma foi usada em três homicídios e seis assaltos. Então, essa acaba sendo a trajetória de uma arma, quase sempre. Isso, de alguma forma, acaba abastecendo o mercado criminal e tem uma série de estudos que mostra isso em vários estados brasileiros, que boa parte das armas apreendidas nas ruas pelas Secretarias de Segurança são armas curtas brasileiras vindas da legalidade. Sem falar no problema do feminicídio, que é um problema seríssimo aqui no Brasil, e com uma arma em casa isso tem o risco de aumentar ainda mais. E no problema do suicídio também.
Então, mais uma vez, é isso: onde você quer chegar? Você não é um ministro da Segurança, você não está tentando ver o problema da segurança, toma medidas que pioram a situação. Agora, o que estão dizendo é que a bancada da bala pretende votar o porte [de armas] antes inclusive de votar o pacote do Moro. Tamanha é a gana para aprovar o porte de armas. Se a gente ficar pensando: quem estará por trás disso? É mera ignorância? É mera loucura, burrice, vontade de autoextermínio? Que processo é esse?
Vendo a tensão que existe nas grandes cidade, flexibilizar o porte de armas em um país que tem 64 mil homicídios e o nosso maior desafio é a redução dos homicídios! Pergunta para as polícias militares. Os policiais militares, boa parte, são contra a flexibilização do porte, porque eles trabalham fazendo revistas nas ruas e têm um cotidiano muito difícil. E quando se flexibiliza o porte de armas, os riscos dos próprios policiais aumentam muito. Então tem muitos coronéis da polícia fazendo campanha para dificultar [o porte de armas]. Muitos policiais estão escrevendo para os políticos para não flexibilizarem o porte porque isso piora e aumenta os riscos do trabalho da polícia no cotidiano. Então a gente fica pensando: de onde vem essa ideia desse retrocesso em um país tão violento?
A gente sabe que do lado da polícia também há muita morte. As condições de trabalho da polícia também diz muito sobre a situação da segurança pública no Brasil?
Muitos policiais entram na corporação com o sonho de serem heróis. E eu já conversei com vários. Só que ao mesmo tempo é uma expectativa muito equivocada e ele tem uma ideia equivocada de polícia. Ele acha que vai prender o bandido e ele é o mocinho. E não é assim que se faz polícia no mundo, apostando na Polícia Militar, apostando na polícia ostensiva. Depois, com o tempo, eles começam a perceber que estão enxugando gelo. Porque ele prendeu um rapaz ou matou um moleque que ele achava que era o criminoso da quebrada e no dia seguinte tem outro. Porque o tráfico de drogas produz um lucro muito elevado. E é esse dinheiro, por ser ilegal, que atrai.
Então, enquanto a gente não compreender esse mecanismo de funcionamento, não adianta enxugar gelo, expor sua vida e se matar de trabalhar, arriscando a própria vida, e matar às vezes, achando que vai resolver o problema, porque não resolve. Então eu acho que a gente já tem décadas de erros e de problemas que já permitem esse tipo de debate com a própria polícia. O trabalho de investigação é fundamental. Nunca se esforçou, sempre se apostou nesse heroísmo do policial, da polícia ostensiva, em um bairro pobre contra jovens e negros, que são vistos como os grandes vilões.
Você aponta como um dos principais desafios a redução dos homicídios. Como o estado deve agir se não for pela via da violência?
Me parece, nesses anos todos, com a entrada do tráfico de drogas, que transformou a cena criminal no Brasil de uma forma geral, por um lado, e aumentou a violência dos conflitos em vários estados entre grupos rivais por causa de grana mas, por outro lado, ele deu uma racionalidade para a galera que está no crime e que se envolve com muita grana.
Então, você consegue, de alguma forma, induzir a uma pacificação desse mercado e fragilizar financeiramente, a partir do momento em que a gente diz: “Olha, a gente não tolera a violência do tráfico de drogas. Então se houver homicídio, a gente vai investigar, vocês vão quebrar durante um tempo porque enquanto a gente não souber quem matou a gente não sai dessa quebrada, então vai ser ruim para o negócio de vocês”. E de alguma forma funciona.
Com as UPPs, por mais problemas que tivessem, depois de 2007, 2008, o Rio de Janeiro, depois de São Paulo, foi o estado que mais reduziu o crime, caiu mais de 50% os homicídios. E no livro a gente descreve uma conversa que foi grampeada entre um integrante do PCC, que era o Gegê do Mangue, que foi morto depois, e o Nem da Rocinha. E ele estava vendendo droga para o Nem e conversando sobre um carregamento. E chega um momento que ele fala assim: “Olha, Nem, a gente vende para o seu rival, que é o Comando Vermelho, tudo bem?” E ele fala: “Vocês têm que parar de guerrear aí porque o crime fortalece o crime. Que história é essa? Vocês ficam aí batendo cabeça, mas o crime fortalece o crime, tem que parar com isso. Se precisar, a gente vai aí e faz a mediação para vocês começarem a trabalhar juntos”. E o Nem responde: “A gente não vai perdoar porque já são muitos anos, vários amigos nossos foram mortos, mas a gente já entendeu isso, porque quando a gente invade uma favela, a polícia ocupa, então não vale a pena. Então a gente não pacificou, não fez as pazes, mas a gente não está mais em guerra”.
Então qual é o desafio? É você acabar com a violência do tráfico de drogas e o excesso, os abusos de consumo e os problemas decorrentes de saúde, são outras formas de lidar, não é a polícia, necessariamente. A Europa e os Estados Unidos são os maiores mercados consumidores de droga, só que não são mercados violentos. Então, a gente não vai acabar com a droga. A droga vai continuar existindo. Então como se reduz os danos desse comércio? E quais são os danos reais? Os danos reais são a violência. Então eu acho que o que a gente tem conversado no “Monitor da Violência” é assim: redução de homicídios é a questão. E a redução de homicídios se faz induzindo a pactos. Assim se consegue fazer com que as pessoas parem de se matar porque o homicídio atrapalha a todo mundo.
Nas primeiras conversas, nos meus primeiros trabalhos, eu conversei com vários matadores e isso ficou muito evidente, porque eram pessoas que tinham matado 30 pessoas e estavam todas soltas no final dos anos 90 e eles diziam assim: “Eu já matei porque tem um monte de gente querendo me matar”. Ele matava uns e os amigos do outro queriam matá-lo. Então é aquela coisa: “Também morre quem atira”. É um ciclo de vingança.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira