A segunda edição do programa “No Jardim da Política” em 2019, na Rádio Brasil de Fato, na última quinta-feira (10), trouxe à tona um dos temas mais polêmicos deste início de ano: a política externa do governo Jair Bolsonaro (PSL).
Conduzida pelos jornalistas Nina Fideles e Leonardo Fernandes, a edição também contou com a participação da correspondente do Brasil de Fato na Venezuela, Fania Rodrigues, e com uma entrevista exclusiva da poeta, atriz e diretora de teatro Luiza Romão.
Para refletir sobre a política externa, o programa recebeu o professor Igor Fuser, do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). Doutor em Ciência Política, ele ressaltou o alinhamento do Brasil aos interesses dos Estados Unidos e a fragilização dos processos de integração regional na América Latina.
A ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo também é um dos temas do programa. O pesquisador reflete ainda sobre o que se pode esperar para o cenário latino-americano no futuro próximo. Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Em que se baseia a política externa do governo Bolsonaro?
Igor Fuser: É muito importante a gente saber identificar o que é conversa inconsequente, bobagens mesmo, quantidade de asneiras que são faladas por esse novo chanceler [Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores], o que é uma coisa realmente estarrecedora, constrangedora. Nos meios diplomáticos, a notícia que a gente tem é de que as pessoas estão envergonhadas, chocadas com o nível baixo do discurso do comando da diplomacia brasileira. Mas é necessário diferenciar essa enxurrada de asneiras daquilo que é substantivo na política externa.
O traço principal dela é o alinhamento total, absoluto, incondicional do Brasil aos Estados Unidos. O Brasil entra numa posição subalterna que nunca existiu na história da sua diplomacia. Nem no regime militar, nem nas épocas do Fernando Henrique Cardoso [1995-2002] e do Collor [Fernando Collor, presidente entre 1990-1992] o Brasil foi tão submisso.
A trajetória da política externa brasileira é marcada pela busca de algum tipo de autonomia. Uma autonomia mais ampla, mais completa, mais assertiva, como foi na época do Celso Amorim, no governo do Lula, ou uma autonomia mais acanhada, mais negociada, como foi na época do FHC. Agora, o Brasil se coloca aos pés dos EUA, como um soldado a serviço do Tio Sam, alinhado com o que tem de pior nos EUA, que é a diplomacia do Trump [Donald Trump, presidente estadunidense].
Existem alguns limites. Por exemplo, o posicionamento do Bolsonaro em relação ao Mercosul é bastante alinhado com os interesses dos EUA. Por outro lado, temos um fluxo comercial muito grande com o Mercosul, e inviabilizaria economicamente o país se deixássemos de lado essa iniciativa, assim como outros pactos internacionais dos quais o país faz parte. Como você enxerga essas limitações dos pré-anúncios que têm sido feitos pelo governo de Jair Bolsonaro?
Existem fatores internos que, como você aponta, colocam limites à implementação dessa política subalterna em relação aos EUA. Existem interesses comerciais. Por exemplo, a prioridade do governo dos EUA na atualidade é o enfrentamento com a China. O mundo hoje é marcado pela disputa geopolítica, e o esforço dos EUA é para diminuir a influência, a presença econômica da China na América Latina (AL).
A pressão externa que o governo brasileiro sofre – isso já era bastante visível no governo Temer – era pra tentar afastar o Brasil da China. No entanto, ela é o principal parceiro comercial do Brasil, o principal comprador das nossas commodities de exportação. Especialmente a soja, secundariamente, o ferro e outros produtos. Então, qualquer limitação no comércio do Brasil com a China provocaria uma situação de verdadeiro colapso em setores estratégicos da economia brasileira. São limites muito complexos.
Você falou do Mercosul. O Brasil não vai acabar com ele, porque a burguesia brasileira ganha com o Mercosul e as empresas transnacionais instaladas no Brasil e na Argentina se beneficiam também desse acordo. Então, o que vai se fazer é limitar o alcance do Mercosul, aprofundar essa tendência de abandono de qualquer projeto de integração regional. E o Brasil não está sozinho nisso. Há um governo na Argentina que vai pelo mesmo caminho.
A mesma coisa [é] a questão do Oriente Médio. Sobre a conversa de transferir a embaixada do Brasil pra Jerusalém. Apenas dois países do mundo tomaram essa decisão, que são EUA e Guatemala. É uma posição que mostra uma ruptura com uma política histórica de neutralidade do Brasil em relação ao conflito israelense-palestino.
Isso significa, se for levado à prática, o risco de perda de exportações [brasileiras] para países de maioria muçulmana. Trata-se de uma tentativa de agradar setores evangélicos que têm uma visão completamente maluca. Eles confundem os hebreus do Velho Testamento e certas passagens da Bíblia com a situação atual do conflito entre Israel e Palestina. Isso não é uma invenção de evangélicos brasileiros. É importado dos EUA, onde fundamentalistas evangélicos têm a mesma visão e pressionam nessa direção.
Esse alinhamento que o senhor menciona, que também é ideológico, é mais uma das contradições do governo, inclusive do seu próprio slogan, que coloca “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. [Essa postura] tem impacto na soberania nacional – pré-sal, Amazônia, o cuidado com o clima, que também tem muito a ver com a Amazônia. É correto dizer que esses são os grandes interesses dos EUA com relação à nossa soberania e às riquezas nacionais?
Esses que se apresentam como patriotas são os mais entreguistas, são verdadeiros traidores da pátria, e isso tem que ser dito claramente. O “Brasil acima de tudo” não está tão acima assim; é abaixo dos EUA. É uma hipocrisia total.
Nessa questão das riquezas nacionais, nós estamos presenciando crimes que nunca houve na história do Brasil, com essa dimensão. A entrega do pré-sal, por exemplo. O pré-sal é o maior tesouro da indústria do petróleo mundial dos últimos 60 anos. São reservas gigantescas de petróleo de alta qualidade.
A Petrobrás desenvolveu tecnologias que permitem exploração do pré-sal a custo baixo, com alta eficiência, e esse petróleo está sendo entregue de bandeja pras empresas transnacionais. Um terço do pré-sal já foi entregue a preço vil pra empresas estrangeiras. e o resto está a caminho de ser entregue também.
A tentativa dos governos Lula e Dilma de utilizar o pré-sal como fator de desenvolvimento pro Brasil foi abandonada completamente. Nós estamos vivendo o maior processo de desnacionalização da economia brasileira em toda a nossa história. Estamos regredindo à condição de colônia.
Um dos principais argumentos pró-privatizações é o de que o Estado não teria competência para gerir os negócios de uma empresa do tamanho da Petrobrás. Conversamos com o economista Guilherme Melo sobre esse argumento, e ele disse que isso é tão contraditório que as empresas que mais compram ativos do Brasil no setor elétrico, por exemplo, são estatais de outros países – da Noruega, da China.
A Petrobras é uma das melhores empresas de petróleo do mundo, uma das mais eficientes e mais capazes de inovação tecnológica. E ela está sendo sucateada, reduzida ao mínimo da exploração de petróleo. Eles só não estão colocando na agenda a privatização completa dela porque isso seria um escândalo. Eles percebem que seria demais, iria dar muita bandeira sobre o que é realmente a essência do atual governo. Há também alguma resistência de setores militares que estão no governo.
A mesma coisa no setor elétrico. O Brasil tem uma matriz hidrelétrica que é referência no mundo inteiro. E o que eles vão fazer? Vão acabar com a Eletrobras, privatizar, entregar as hidrelétricas para o capital estrangeiro. É uma ofensiva em todas as frentes contra o patrimônio público brasileiro, contra os serviços públicos essenciais, de saúde, de educação, de Previdência. E eles querem fazer isso muito rápido.
Na geopolítica, nós estamos vendo governos de extrema direita se consolidando. O Brasil é um grande ator na América, e isso pesa na balança, mas também há resistência. Teremos várias eleições em 2019, tivemos a posse do Maduro, na Venezuela. O que podemos esperar desse cenário?
Analisando friamente a situação mundial, a gente encontra muito pouco motivo de alegria. Temos um mundo que está indo no sentido que não é o do aprofundamento da democracia, da justiça social, do avanço dos direitos humanos, mas o contrário. Esse avanço da direita se nutre do próprio fracasso do capitalismo em atender às expectativas das massas, das populações, dos povos no mundo inteiro.
As pessoas estão muito frustradas, revoltadas, e essa raiva, politicamente, tende a ser canalizada pra algum lugar. A direita tem sabido canalizar melhor do que a esquerda essa raiva. A direita chega e aponta o inimigo. Na Europa, o inimigo é o imigrante, o estrangeiro, que é bode expiatório. Eles estão conseguindo vender [a ideia], na Europa inteira, de que eles estariam muito bem se não fossem os africanos, os latino-americanos, os asiáticos, e assim por diante.
Na América Latina, eles estão encontrando como inimigo a esquerda, vendendo uma ideia de forma deturpada e, com isso, favorecendo projetos demagogos, como esse que foi vitorioso nas urnas do Brasil. Em outros lugares do mundo, essa raiva vai para o fundamentalismo religioso, como no Oriente Médio. E, na própria América Latina, se a gente vai analisar o que é o crescimento dos evangélicos, [isso] tem muito a ver com a negação do mundo.
É uma capitalização também desse descontentamento. Você não vê perspectivas no mundo como ele é, e aí abraça a perspectiva de uma vida futura depois da morte, que é oferecida pela religião. Na América Latina, nós tivemos um período de avanço muito importante das lutas sociais, o estabelecimento de governo progressistas, em grande parte da América do Sul e, de parte da América Central, no Caribe também. Esses governos foram vitoriosos em vários aspectos. Implementaram políticas públicas que favorecem avanços na educação, na saúde, aumento do nível de salário, da capacidade de consumo, melhoria da alimentação, diminuição da pobreza. Enfim, uma série de avanços, mas eles não foram acompanhados por uma mudança – que seria necessária – no plano dos valores, das ideias.
As ideias continuaram sendo as ideias burguesas, do capitalismo, e é muito difícil essa mudança ideológica. Não é algo que se faz simplesmente num estalar de dedos, com uma decisão estratégica. São fatores muito complexos que estão envolvidos.
Então, a falta dessa mudança naquilo que [Antonio] Gramsci chama de “senso comum”, das mentalidades no plano da ideologia, favoreceu o contra-ataque das forças conservadoras, explorando as fraquezas desses governos. Agora, vem a contraofensiva – que é muito forte – da direita, e [ela] está obtendo resultado. [Eles] viraram o governo na Argentina, no Brasil, e estão tentando, de todas as formas, virar o governo na Venezuela. Este ano, teremos novas batalhas. Vão tentar virar o governo na Bolívia, e lá não vai ser simples.
A Bolívia é o país da América do Sul com os maiores índices de crescimento nos últimos 15 anos. No governo do Evo Morales, o país conseguiu avanços sociais muito importantes. O salário mínimo, por exemplo, quadruplicou em dez anos de governo do Morales. O governo da Bolívia tem elementos muito favoráveis a oferecer pra enfrentar, nas urnas, democraticamente, a tentativa da direita – e, por trás da burguesia local, o imperialismo – e tentar reverter a situação lá. Isso vai ser no final do ano, em outubro.
Ainda teremos eleições no Uruguai, também neste ano, e um referendo constitucional em Cuba. Serão formas de resistência progressista ao avanço da direita na América Latina?
O governo cubano está dando passos importantes para reforçar sua legitimidade, aumentar a democracia, a possibilidade de participação popular, em um contexto muito difícil. Essa ofensiva da direita na América Latina reflete em Cuba.
Havia expectativa de normalização da inserção internacional de Cuba, a partir do acordo do país com os EUA, no governo Barack Obama -- algo que foi revertido com Trump, que aposta em uma política mais dura e agressiva. Cuba está se defendendo e reforçando a legitimidade da sua revolução, preservando seus avanços e espaços socialistas que foram criados.
Cuba está resistindo há 60 anos e vai continuar resistindo.
O assunto Venezuela é sempre complicado para o público, porque há um bombardeio diário da mídia tradicional sobre esse assunto. Por que a oposição questiona esse novo mandato do Nicolás Maduro?
Primeiro, gostaria de parabenizar o trabalho do Brasil de Fato por cobrir a Venezuela estando no olho do furacão, oferecendo informação confiável e alternativa à cobertura deformada dos grandes meios de comunicação. Há uma campanha de desestabilização e intervenção externa na Venezuela, tanto da mídia internacional, quanto dos veículos brasileiros.
Trata-se de um governo legítimo. Maduro foi eleito em eleições competitivas, com a participação de mais de 40 partidos, com vários candidatos, inclusive com um candidato da oposição conservadora que teve uma votação expressiva. O Maduro ganhou essa eleição com 2/3 dos votos, é incontestável.
Li na Folha de São Paulo que "Maduro foi eleito com suspeita de fraude". Onde está denúncia concreta de fraude? Que denúncia foi essa? As eleições foram verificadas por mecanismos transparentes. É um presidente legítimo. Aliás, mais legítimo que o Bolsonaro, que só venceu porque inviabilizaram a candidatura do Lula. Há uma sombra sobre a legitimidade da eleição do Bolsonaro, assim como a disseminação de mensagens falsas às vésperas da eleição, que também é uma sombra no governo brasileiro. Mas, para a mídia brasileira, o que não é legítimo é o governo da Venezuela.
A Venezuela tem um governo democrático, com vigência da liberdade de expressão. A oposição diz o que quer sem ser reprimida. As emissoras de maior audiência na TV estão nas mãos da oposição, os partidos funcionam. No ano passado, líderes da oposição foram aos EUA para pedir a invasão da Venezuela pelos EUA. Elas fizeram isso, voltaram para a Venezuela, tranquilas. Em qualquer lugar do mundo, um político que peça uma invasão externa ao seu país é preso por traição à pátria. Como, não há liberdade?
A Venezuela tem problemas graves, mas o ponto inicial é: quem vai resolver esses problemas são os venezuelanos, com os mecanismos democráticos garantidos pela sua Constituição. A Venezuela sofre sanções tão duras quanto as que foram aplicadas em Cuba. Essas sanções são responsáveis, em grande medida, pelas dificuldades que o país está atravessando atualmente.
É importante falar da disputa global também no contexto venezuelano. Rússia e China fazem uma espécie de resistência, com palavras do [Vladimir] Putin proibindo qualquer ação militar dos EUA. A Venezuela está inserida nessa disputa global?
O governo da Venezuela está tentando enfrentar a crise, resistir a essa pressão fortíssima que vem de fora. Eles vão buscar aliados. Aquele que está enfrentando um inimigo muito mais forte e poderoso sabe que não vai se aguentar sozinho. A Venezuela encontrou aliados na China e na Rússia.
A China tem tido um papel importante no apoio ao governo venezuelano, com linhas de financiamento para tentar recuperar setores da economia venezuelana, em especial o petróleo. São empréstimos com pagamento a longo prazo. A Rússia está equipando o exército da Venezuela, que está sendo ameaçada de invasão pelos EUA, e nós sabemos que eles intervém mesmo.
Eles já praticaram dezenas dessas ações ao longo do século 20. Na América Central, todos os países passaram por isso. Houve financiamento de golpes no Chile, na Argentina e no Brasil, algo amplamente conhecido e comprovado por documentos. Para resistir aos EUA, a Venezuela está buscando esse apoio militar na Rússia, para que possam se defender. A Venezuela está se aproveitando da disputa geopolítica para encontrar um contrapeso nessa disputa global.
Ao longo das eleições no Brasil, ouvimos duas coisas bem curiosas sobre a Venezuela: que eles não vivem uma democracia, e também sobre a "URSAL", a União das Repúblicas Socialistas da América Latina. Como você enxerga o aparecimento da URSAL no meio da disputa?
Evidentemente, não existe nada nesse sentido. Para começar, o único país socialista na América Latina é Cuba. Para nossa tristeza, o que temos visto é uma destruição da tentativa de integração regional. A gente pode aproveitar essa piada, algo delirante que foi aproveitado na campanha eleitoral, e refletir um pouco se não seria no fundo uma boa ideia.
Os povos latino-americanos são parecidos, com línguas próximas, de fácil entendimento. São realidades sociais parecidas, todos filhos da colonização, com genocídio os povos indígenas, escravização dos povos africanos, ditaduras em períodos da nossa história, a desigualdade social absurda. Precisamos nos aproximar dos países vizinhos, criar pontes de entendimento com outros povos. Isso foi tentado e está na Constituição brasileira. Quando esses governantes atacam o Mercosul ou iniciativas de busca de aproximação com países da região, eles estão indo contra a Constituição que eles juraram.
Precisamos refletir sobre isso. Por que não o socialismo? O capitalismo só causa dor, miséria e revolta no mundo inteiro. Precisamos de alternativas. No século 20, houve um esforço de construção de uma sociedade alternativa socialista que não deu certo. Não funcionou porque ocorreu em condições desfavoráveis, erros foram cometidos. As pressões para que essas experiências não dessem certo foi muito grande. Mas não é porque se tentou uma vez e não se conseguiu, que não se deva continuar sonhando -- e mais que sonhando, almejando e buscando uma alternativa a esse sistema.
O capitalismo, na maneira como está concebido, tende a piorar cada vez mais a situação da humanidade, dos trabalhadores e dos povos. Os avanços tecnológicos, que deveriam tornar nossa vida cada vez melhor, mais próspera, está sendo usado ao contrário, colocando robôs no processo do trabalho, deixando trabalhadores sem fonte de renda. A robotização deve desempregar centenas de milhões de pessoas no mundo inteiro. Não tem como achar soluções dentro desse modelo e lógica. O capitalismo está falido como alternativa humana.
*Com colaboração de Cristiane Sampaio.
Edição: Guilherme Henrique