MEMÓRIA

Aldyr Schlee: sem fronteira, na alma e na obra

No dia 15 de novembro, aos 83 anos, morreu o criador da camiseta canarinho da Seleção Brasileira de futebol

Brasil de Fato | Porro Alegre (RS) |
 Natural de Jaguarão, foi sepultado em Pelotas, onde residia há muitos anos intercalando temporadas no sítio em Capão do Leão
Natural de Jaguarão, foi sepultado em Pelotas, onde residia há muitos anos intercalando temporadas no sítio em Capão do Leão - Fotos: Stela Pastore

Torcedor da Celeste e do Brasil de Pelotas, foi sepultado com o caixão coberto pela bandeira uruguaia e com nota de pesar do Xavante. Jogador de futebol de botão, consagrou-se também por escritos ligados à bola, como Contos de Futebol.

A notabilidade por ter criado a camisa da seleção por meio de um concurso em 1953 não o alegrava. Se entristecia ao ver o símbolo que remete à nacionalidade utilizado despropositadamente. “Hoje essa camiseta é usada contra  a presidenta Dilma e pelo impeachment, com o moralismo mais barato  que se pode imaginar.  É o símbolo da corrupção, da miséria, da pobreza e da situação que foi colocado miseravelmente o futebol brasileiro”, sublinhou em entrevista concedida a mim e ao jornalista Renato Dalto numa tarde de 2015 em sua casa em Pelotas, antes do golpe.  Na Copa desse ano recusou-se a dar entrevista sobre a criação da camisa.

O reconhecimento por desenhar a camisa da seleção ou sua ligação com o futebol, reduz o que foi Schlee (lê-se Schilê). Escritor, jornalista, desenhista, caricaturista, tradutor, professor de Direito Internacional por 30 anos, doutor em Ciências Humanas, criador da faculdade de jornalismo da Universidade Católica de Pelotas, ganhador do prêmio Esso de Jornalismo, um dos criadores do jornal Última Hora, autor de mais de 15 livros,  a maioria contos, vencedor de duas Bienais Nacionais de Literatura, seis prêmios Açorianos de Literatura, Prêmio Fato Literário RS e homenageado com a Ordem do Mérito Cultura do Brasil, pelo Ministério da Cultura.

Esses são alguns dos atributos deste personagem do  sul da América, que traduziu na sua escrita o universo fronteiriço. 

Os excluídos

Mesmo com origem aristocrática em Jaguarão, onde a família ganhou dinheiro durante a construção da ponte Mauá, que liga Brasil e Uruguai, Schlee sempre retratou os excluídos na literatura. “Meus personagens são os rejeitados”.  Disse que isso era ‘consciência de classe’, relatando que ao mudar para Pelotas em 1950, o pai ficou desempregado e ele trabalhou para manter a família.

Schlee desenha os cenários onde habitam seus personagens, descreve sua personalidade  e os muscula de humanidade e imaginação, com meticulosa pesquisa documental. Traduz em suas narrativas esse universo periférico, desgarrado, de pessoas simples, compostas de aridez e sonho.

“Eu desenho os personagens, a cidade, faço mapas. O Erico (Verissimo)  fazia isso. No livro Contos Gardelianos eu desenhei cada uma das personagens a partir de uma figura. Não é regra, mas acho que um traço segura o personagem para que ele corresponda àquela imagem”, relata.

Schlee tinha na alma e no conhecimento os saberes desse espaço fronteiriço entre Brasil e Uruguai com os quais inundava sua literatura. Seu último livro lançado em setembro, ‘O Outro Lado – uma noveleta pueblera’, acentua essa definição.

“Nasci na fronteira e tenho uma obra por causa do encontro do português e espanhol. Precisei construir um idioma próprio. Mas isso não transmite a exuberância e a riqueza que é o mundo da fronteira, passando por esse limite imaginário e o limite institucional, feito para separar.”

Deixou pronto o Dicionário da Cultura Pampeana Sul-rio-grandense. Compilou o glossário rico que nutriu sua vida e literatura nesse universo, incluindo conhecimentos campeiros, espécies animais, ervas medicinais que vicejam no pampa desse sul da América.

E foi esse autor de criação pródiga e desenfreada, que manteve um vivo olhar de menino entusiasmado, mesmo enfrentando 14 cirurgias recentes e apesar de nem sempre ser reconhecido.

Livro inspirou o filme O Banheiro do Papa

O livro “O Dia em que o Papa foi a Melo”, publicado originalmente em espanhol, foi a inspiração do filme “O Banheiro do Papa”. Adaptaram o roteiro sem consultá-lo e sem dar os créditos. “Eu estava feliz porque alguém teve a mesma sensibilidade minha e fez uma livre adaptação”, declarou, generoso.

Ativista de esquerda, foi preso na ditadura militar.  Ao longo da vida reuniu um grande número de admiradores que lotavam as filas dos lançamentos, como na última sessão em Jaguarão em 26 de setembro em que autografou por quatro horas seguidas.

Aldyr García Schlee faleceu de câncer de pele 22 meses após a morte de sua companheira de vida por 58 anos, Marlene Rosenthal Schlee, com quem teve os filhos Sylvia, Andrey e Aldyr.  Marlene morreu de câncer de pulmão. Ela não era apenas seu amor, sua inspiração, sua cúmplice. Era sua crítica mais rebuscada e contundente. A primeira a ler seus escritos e a manipular os originais.  Sua leitora rigorosa. Também seu esteio e sua memória, dizia.

Manteve o humor intenso, o sorriso limpo e o rigor literário. Schlee não tinha fronteiras. Nem físicas e nem imaginárias para a sua criação.


Este conteúdo foi originalmente publicado na versão impressa (Edição 8) do Brasil de Fato RS. Confira a edição completa.

Edição: Marcelo Ferreira