“Uma 'mexicanização' com a sociedade dominada pelas máfias, a economia aprisionada pelo rentismo e os trabalhadores sem nenhum direito”. Esta é a descrição sombria do país que o presidente da CUT-RS, Claudir Nespolo, faz na antevéspera do governo Bolsonaro.
Mas se o novo governo avançar – como promete – contra os direitos sociais, haverá luta. “As centrais, tanto à direita, quanto à esquerda, estão se reunindo. Sabem que ninguém se salvará individualmente”, enfatiza. Para ele, o próximo período vai ser de “muita pegada” que só será possível com união. “A unidade tem um preço e nós vamos pagar este preço”, avisa.
Reforma da Previdência
Nespolo entende que será mais difícil para o novo inquilino do Palácio do Planalto fazer com os direitos previdenciários aquilo que Michel Temer fez com os trabalhistas. “É bom saber que a maior greve geral da história do Brasil, no dia 28 de abril do ano passado, foi em cima do tema da previdência”, relembra. “Se a reforma trabalhista não chamou a atenção dos jovens, dos desempregados, dos aposentados, a previdência mobiliza todo mundo. E podemos sim fazer uma grande mobilização para brecar sua aprovação”, adverte.
Direitos trabalhistas ameaçados
Bolsonaro ameaçou extinguir o Ministério do Trabalho, juntando–o a outra pasta. Acabou desistindo. Foi mais uma das tantas idas e vindas do presidente eleito. Porém, se tal ainda vier a acontecer, será, segundo Nespolo, o começo do fim de um sistema de proteção ao elo mais fraco da população. “Significa eles (Bolsonaro) meterem a mão no FAT”, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, para outros fins. É muito dinheiro. “Para se ter uma idéia, em 2016, o FAT arrecadou R$ 46,6 bilhões”, exemplifica. O desaparecimento do ministério representaria, para o sindicalista, “a volta a um período da pré-revolução industrial tardia do Brasil aparentado à servidão”.
Anarcocapitalismo no Ministério da Fazenda
O presidente da central acha que o economista Paulo Guedes, filiado ao fundamentalismo neoliberal e futuro superministro, é o pior do pensamento econômico. “É um sujeito da chamada escola de Chicago, do anarcocapitalismo. Para essa gente, o semáforo de trânsito é uma intervenção do estado no direito de ir e vir...”
Apesar disso, trabalhadores que ganham entre 2,5 e 5 salários-mínimos votaram massivamente na ultradireita. “E votaram nela por conta das fake news. Se tu falavas (na campanha) com o trabalhador em defender o salário-mínimo, ele respondia falando em corrupção; se falavas em garantir o 13º., ele respondia com Venezuela; se falavas em direitos, ele respondia com Cuba...” Acentua, porém, que a conversa com este contingente não se fará na base da cobrança do voto.
“Vamos lembrar o que interessa: o direito à aposentadoria, à dignidade, à vida”, explica. E prossegue: “Tenho certeza que apesar das fake news, que vão continuar, dos ataques ao PT, ao MST, à esquerda, nos chamando de coisa que não presta, aos poucos vai cair a ficha do trabalhador e ele virá com a gente para derrotar esse projeto e construir um futuro decente”.
“A maior ameaça é a extinção da Justiça do Trabalho”
Há muitas ameaças no horizonte dos trabalhadores, mas a maior delas é a extinção da Justiça do Trabalho, seja formalmente seja por inanição. É a opinião da juíza do trabalho Valdete Severo.
A reforma trabalhista aprovada pelo governo Temer e apoiada pelo futuro presidente já criou barreiras que dificultam o acesso gratuito do assalariado à Justiça do Trabalho.
Os números oficiais são um exemplo claro: entre janeiro e setembro de 2017, as Varas do Trabalho receberam 2,013 milhões de reclamatórias. Na soma dos mesmos meses deste ano, houve uma queda praticamente para quase a metade, 1,287 milhões. São dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Mortos e mutilados
O discurso dos novos donos do poder, segundo nota, é de “fim da social-democracia” para oferecer maior liberdade ao mercado. Ignora-se se o Estado fará alguma regulação. Agora, durante a transição, Bolsonaro prometeu até extinguir o Ministério do Trabalho. Mas, aparentemente, recuou. A juíza repara que a pasta surgiu “pela necessidade do próprio sistema, de assumir uma prática de proteção a quem trabalha”. Algo necessário “a fim de limitar a exploração e com isso viabilizar a reprodução da força de trabalho e a circulação do dinheiro para consumo, o que é vital para a economia interna”.
Alerta ainda que, caso haja suspensão ou redução das tarefas de prevenção, fiscalização e regulação das leis do trabalho, tudo irá se agravar. “Sem prevenção, não há dúvida de que os índices, já alarmantes, de pessoas mutiladas, mortas precocemente ou violadas em sua dignidade em razão do trabalho aumentarão”, assinala.
“Subterrâneo racista e machista”
Tratando do retrocesso que significará o fim – ou o relaxamento -- do combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil, observa que o campo ainda é de especulações. Mas adverte que aquilo “que se desenha para o país, desde 2013 e notadamente a partir do golpe de 2016, é um projeto no qual os direitos sociais não tem espaço e os vulneráveis são convidados a “aceitar ou desaparecer". Entende, porém, que “é um processo histórico ainda em disputa”.
Sobre os perigos de 2019, a juíza comenta que “em alguma medida, todas as pessoas que depositaram seu voto em favor do discurso de retirada de direitos e supressão de minorias chancelaram esse projeto de estado”. O que aconteceu quando, inconscientemente, acreditavam estar apenas protestando contra a política ou, “em uma linha ainda mais idílica, quando acreditavam estar atuando contra a corrupção”.
É uma cultura que não nasceu ontem mas deriva da construção do Brasil com séculos de escravidão, Estado Novo e ditadura militar. E conclui: “Esse subterrâneo racista, machista e fascista precisa ser revolvido, sob pena de não conseguirmos compreender a gravidade desse tempo histórico”.
Reforma da Previdência de Bolsonaro pode ser ainda pior do que a de Temer
A edição nacional do Brasil de Fato entrevistou a pesquisadora Júlia Lenzi, especialista em seguridade social sobre a PEC 287/16, do governo Temer, que pretende mexer na Previdência Social. Embora a reforma esteja emperrada, são más notícias para o trabalhador.
Na avaliação de Júlia, as ideias de Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” de Bolsonaro, para a Previdência são ainda “piores do que as de Temer”. Abaixo, a síntese de algumas de suas observações sobre o quadro que espera os brasileiros em 2019:
Previdência sob regime de capitalização - “Em um regime de capitalização, é cada um por si. Só as contribuições vinculadas ao seu salário financiam sua aposentadoria. Não existe contribuição do empregador, nem por parte do Estado”.
Idade mínima de aposentadoria - O texto da reforma de Temer estabelece o mínimo de 65 anos de idade para homem e 62 para mulheres. No caso das mulheres, o cálculo “não levou em conta, por exemplo, que mulheres trabalham 75% a mais que os homens em serviços de reprodução e serviços domésticos”, além de ganharem, em média, 25% a menos que os homens embora exercendo as mesmas funções.
Tempo mínimo de 25 anos de contribuição – “Isso é extremamente grave. Se pegarmos dados de 2015, 80% das aposentadorias concedidas por idade não atingiram 20 anos de contribuição. Então, estatisticamente, se for aprovada a reforma da forma como colocada, 80% da classe trabalhadora será excluída da proteção previdenciária, que não vai conseguir atingir o tempo mínimo de contribuição para acesso a uma aposentadoria eletiva”.
Pensão por morte - Hoje, a pensão só é vitalícia se o cônjuge sobrevivente tiver mais de 44 anos. Na proposta de Temer, será ainda mais restrita. “A base será 50% do benefício e 10% para cada um dos dependentes. Só que essas cotas de 10% não são reversíveis. Uma viúva só vai conseguir 100% do valor de pensão se ela tiver quatro filhos. À medida que atingirem a maioridade previdenciária, que é de 21 anos, essas cotas de 10% são cortadas. Ao final, portanto, quando os filhos atingirem a maioridade, essa mulher viúva vai ter 60% do valor da pensão”.
Acumulação de aposentadoria com pensão por morte – Não será mais possível quando a soma dos dois benefícios recebidos pela mesma pessoa ultrapassar dois salários-mínimos.
Benefício de prestação continuada – É aquele benefício pago ao idoso ou pessoa com deficiência que comprove não ter meios de assegurar a própria subsistência e não conta com ajuda da família. Atualmente, parte da idade mínima de 65 anos, mas vai subir para 68. O aumento ignora as oscilações da expectativa de vida nas diferentes regiões. Julia Lenzi lembra que, em alguns bairros da periferia de São Paulo, por exemplo, a expectativa de vida ronda os 54 anos. “Esses idosos sequer chegarão a poder receber o benefício de prestação continuada, porque a expectativa de vida está abaixo do previsto em lei”.
Pequeno agricultor familiar – Hoje, ele conta com um tratamento diferenciado na Previdência. “Ele não precisa contribuir mensalmente com dinheiro: comprovado seu trabalho nas condições especiais, ele comprova tempo de trabalho”. Se a reforma for aprovada, será implantada a contribuição individual para ele e cada membro da sua família por, no mínimo, 15 anos para ter acesso a uma aposentadoria no valor de um salário mínimo.
Rotatividade – Na média, o brasileiro consegue contribuir de cinco a seis meses por ano, dada a rotatividade, a precarização, o desemprego. Ou seja, para ter 25 anos de contribuição, a pessoa terá trabalhado, pelo menos, 50 anos. “Se ela ingressou no mercado de trabalho aos 16, que é a idade constitucional mínima para o trabalho hoje, vai trabalhar até os 66 anos para ter a expectativa mínima de contribuição, que é de 25 anos. Com esses 25 anos, ele vai receber só 70% do valor de seu benefício. Para conseguir receber 100%, são 40 anos de tempo de contribuição, o que daria em torno de 80 anos de trabalho”.
Este conteúdo foi originalmente publicado na versão impressa (Edição 7) do Brasil de Fato RS. Confira a edição completa.
Edição: Marcelo Ferreira