Contra uma suposta “doutrinação ideológica”, estudantes defendem que professores universitários não possam abordar temas que envolvam gênero, política, diversidade, ou quaisquer questões consideradas “progressistas ou de esquerda” na sala de aula.
Patricia Souza (nome fictício a pedido da fonte), docente de uma grande universidade particular em São Paulo, denunciou ao Brasil de Fato que estudantes estão boicotando suas aulas e gravando-as sem autorização, com a finalidade de acusá-la de doutrinadora, inspirados no projeto Escola Sem Partido.
A profissional argumenta que os temas abordados em aula são da grade curricular prevista para o curso de Pedagogia. Os estudantes criticam, por exemplo, o ensino da obra de Paulo Freire, pedagogo e filósofo brasileiro, reconhecido internacionalmente e considerado o patrono da educação brasileira.
Ao perceber que os episódios acontecem com um grupo específico de professores, os docentes descobriram que há uma motivação “religiosa” por trás das ações, que criam um ambiente de perseguição. “Há uma orientação das igrejas evangélicas para que as alunas ou alunos que participam, se perceberem algum conteúdo político, tenham a atitude de se retirar da sala de aula. Começamos a perceber esse movimento e estranhar. Isso começou a se repetir em várias salas. Eram conteúdos das disciplinas, mas que elas entendiam ser de cunho político”, relata Souza.
As disciplinas de políticas educacionais e de educação popular, por exemplo, são consideradas doutrinação. Aulas envolvendo a obra de Anton Makarenko, educador ucraniano, também são alvo de críticas, direcionadas, inclusive, contra o estudo de livros publicados no período em que Fernando Haddad ocupava o Ministério da Educação (MEC).
"Começaram a nos denunciar para os coordenadores, começaram a gravar a aula escondido. Uma aluna chegou a ameaçar uma professora, enviando, via Facebook, uma foto dela fazendo um gesto com uma arma na mão. Sem legenda, sem nada, mandou no privado para uma professora com quem tinha tido uma discussão em aula sobre esse tema", afirma a docente.
Na avaliação de Patrícia, ao tomarem essas posições, os alunos refletem o avanço do conservadorismo e da “agenda moral” evangélica no país, além de serem impulsionados por outros professores alinhados, por exemplo, com as propostas do governo Bolsonaro.
“Alguns professores que se posicionam a favor do Escola Sem Partido, convidaram os alunos a ir em marchas de apoio ao Bolsonaro na Avenida Paulista. Não há contradição mais profunda que essa”, comenta a professora, relembrando que grande parte dos estudantes do grupo educacional privado moram na periferia da cidade.
Autocensura
Para a educadora, a perspectiva é que episódios como esses cresçam pois há uma pressão para que os docentes se enquadrem no “senso comum”. “Fica o professor tentando demover os argumentos a partir do conhecimento científico e uma pressão para o esvaziamento do sentido político da educação. Há uma pressão para o esvaziamento porque esse professor acuado, sem respaldo institucional, tem a tendência de se alinhar com essa pressão”.
Nessa situação, os profissionais, principalmente os que atuam em universidades privadas, acabam passando por uma autocensura. “Tem a questão do emprego, do trabalho que está em risco. Eles jogam muito bem com isso. É um esvaziamento do ponto de vista intelectual, do ponto de vista do que é educação, do que nos propomos ao assumirmos essa tarefa”, afirma Patrícia Souza.
Na opinião de Lisete Arelaro, professora titular sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), a liberdade do professor de ensinar é essencial para a aprendizagem dos próprios estudantes. A retirada da autonomia dos docentes, mesmo que não institucionalizada, perturba a dinâmica da aula.
"A confiança entre professor e aluno tem que ser total, tem que existir para poder acontecer um verdadeiro debate. Se eu tenho medo do que será escrito ou se irão gravar o que estou falando para me prejudicarem, é evidente que o professor se constrange, começa a mudar a sua forma de comunicação, isso impede o ensino", critica Arelaro.
A especialista analisa que, de forma contraditória, as forças políticas favoráveis ao Escola Sem Partido e seus adeptos, querem impor uma visão única de sociedade, totalitária, da creche a educação superior. Ela reforça que a imposição de uma narrativa política e social única, sem espaço para críticas, é uma afronta a democracia.
Arelaro lamenta a situação as quais se encontram os professores, que passaram a ir trabalhar com medo de perder o emprego, de serem prejudicados, de sofrer constrangimento moral ou profissional, e, muitas vezes, optando pela autocensura. "Quem se prejudica com isso? Os próprios alunos, e diria mais, o próprio conhecimento. Sem crítica não há como avançar no conhecimento".
Violência
A “perseguição“ de Patrícia não é um caso isolado. No início do mês, uma lista com cerca de 20 docentes e pesquisadores do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) foi veiculada nas redes sociais.
Sem assinatura, a carta acusou os docentes de “doutrinação” e chamou pesquisadores de “petistas” “feminazis”, “travecos” e “invasores”. Além da lista de nomes, as disciplinas e pesquisas das pessoas listadas também são atacadas. Ao final, a carta anuncia “Vocês serão banidos! Escórias! O mito vem aí!”.
Dois dias depois, uma nova carta intitulada “A doutrinação vai acabar” circulou nas redes sociais, apresentando outras ofensas. Apesar de se tratar de um documento anônimo, os autores se autodeclaram como “soldados do Mito”, em referência a Jair Bolsonaro.
Em nota, a UFPE repudiou a carta e afirmou que "não admite, sob qualquer hipótese, que a violência ameace as liberdades de cátedra e individuais" e que defende "a academia como espaço para pluralismo de ideias". A Reitoria também determinou a abertura de uma sindicância interna e comunicará o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal para que os fatos sejam apurados.
A USP é outra instituição de ensino acusada de “doutrinação”. Apesar de João Doria, governador eleito no último pleito, ter se posicionado a favor do Escola Sem Partido, Vahan Agopyan, reitor da USP, falou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que não haverá um controle ideológico na universidade.
“Na USP, é impossível. Obedecemos às leis, mas coisas que ferem nossa autonomia, a USP não precisa seguir. Isso fere. A universidade é um locus de debate. Formamos cidadãos”.
Edição: Diego Sartorato