Nesta terça-feira (13), os deputados que integram a comissão especial na Câmara sobre o projeto conhecido como Escola Sem Partido fizeram uma nova tentativa de seguir com o trâmite da proposta. A sessão teve início às 11h mas foi suspensa sem que o relatório fosse lido, devido às questões de ordem colocadas por deputados da oposição, que destacaram a inconstitucionalidade do texto.
Esta foi a terceira vez que o presidente da comissão, o deputado Marcos Rogério (DEM-RO), pautou a leitura do parecer elaborado pelo relator. Nas tentativas anteriores, deputados da oposição e também movimentos de professores e estudantes conseguiram adiar as sessões. A pauta voltou a ganhar atenção após a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PSL), defensor do Escola Sem Partido.
Para o educador e filósofo Gaudêncio Frigotto, professor aposentado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o movimento Escola Sem Partido distorce o próprio significado de "partido", e, na verdade, prega uma neutralidade inexistente. Frigotto organizou dois livros com artigos de educadores e professores brasileiros sobre o movimento: "Escola 'Sem Partido' - Esfinge que Ameaça a Educação e a Sociedade Brasileira", e "Escola Democrática - Antídoto ao Escola Sem Partido".
"O que [os] preocupa são as análises que desvelam o caráter de injustiças e desigualdades da sociedade, das estruturas que concentram riqueza e capital como se fossem méritos individuais e não fruto das relações sociais. Não por acaso os autores que eles citam são sempre os que dão esse substrato: Marx, Engels, Gramsci, Paulo Freire, e todos que pautam o esforço de entender o que está por trás e produz a violência. Não se pode é impor como ideológico o pensamento do outro e o próprio pensamento não ser ideológico".
Segundo Frigotto, a premissa do projeto Escola Sem Partido parte de uma desautorização o do trabalho do professor. "Colocam o professor como disseminador ideológico, criminoso. Instalam o ódio ao professor através da denúncia. Se a relação pedagógica é de confiança e diálogo com o diferente, é preocupante essa desautorização como profissional", afirmou.
Um estudo divulgado na última quarta-feira (7) pela Varkey Foundation e divulgado pelo Índice Global de Status de Professores de 2018 mostra que o Brasil caiu para o último lugar do ranking de prestígio a essa profissão. O levantamento, feito com 35 países, tem como critério a forma como os docentes são enxergados pela população.
Para o professor aposentado da UFF, no entanto, com o crescimento do Escola Sem Partido, a a reação contrária ao movimento também ganha força. Ele destaca sindicatos que estão municiando seus professores juridicamente para o clima de vigia e denúncia incentivado pelo projeto conservador. "Sou esperançoso, tenho andado o Brasil e debatendo e digo que não podemos cair na pedagogia do medo, temos que ter prudência e conversar muito com os pais e alunos", concluiu.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato -- Qual a origem ideológica do movimento Escola Sem Partido?
Gaudêncio Frigotto -- É sintomático que esse movimento -- que se diz movimento, mas, na verdade, é uma organização mais complexa -- tenha surgido em 2004, depois, portanto, do primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Surgiu dentro de uma perspectiva que toma corpo como um Ovo de Serpente, e depois dos movimentos de 2013, 2014 e 2015, passa a ser um movimento agressivo inclusive na sociedade, querendo se transformar em projeto de lei, embora seja inconstitucional e portanto penso que do ponto de vista de ele prosperar, o Supremo Tribunal Federal não vai permitir, porque já há uma jurisprudência do parecer do Ministro Barroso.
Esse movimento, em primeiro lugar, falsifica o próprio conceito de partido. Partidos são organizações que se propõem juntar membros para disputar o poder do Estado, o governo. Eles sabem que a escola não é um partido e tampouco sabem que a escola não faz propaganda partidária a não ser eventualmente algum professor, mas de todas as cores, não só a chamada esquerda. Eventualmente pode existir isso.
Na verdade, o que está por trás é que primeiramente eles querem uma escola neutra, o que preocupa eles são as análises que desvelam o caráter de injustiças e desigualdades da sociedade, das estruturas que concentram riqueza e capital como se fossem méritos individuais e não fruto das relações sociais. Não por acaso os autores que eles citam são sempre os que dão esse substrato: Marx, Engels, Gramsci, Paulo Freire, e todos que pautam o esforço de entender o que está por trás e produz a violência. Manipulam a ideia do partido, mas na verdade o controle é sobre isso, e é tão explícito que o presidente eleito disse que irá tirar Paulo Freire das escolas.
A segunda manipulação que eles fazem é na esfera pública e no mundo particular da família. Evidentemente as famílias têm todo o direito de terem a orientação religiosa, sexual, futebolística do mundo privado. Mas a sociedade não é o mundo privado de uma família, é o conjunto de cidadãos que vivem nela. E portanto até clássicos liberais, positivistas ou estruturalistas, como Durkheim, o pai da sociologia da educação, chama a atenção de que é o papel da escola arrancar os filhos do mundo particular porque lá eles têm uma educação privada e a sociedade é diversa. Gostemos ou não gostemos, é assim que a sociedade é.
Essas duas manipulações, no fundo, confluem para esse retrocesso praticamente à Idade Média. E isso se acresce porque o Escola Sem Partido tem um grande apoio do fundamentalismo religioso, os adoradores de bezerros de ouro, como dizia Brizola, que querem uma rádio para manipular o povo e tirar dinheiro. Neste momento se juntam nesse processo o fundamentalismo econômico, que está arrasando todos os direitos públicos, o autoritarismo, que também está na matriz cultural de nossa sociedade, esse impropério da Escola Sem Partido, que autodenomina que suas verdades são neutras, e um fundamentalismo religioso que quer voltar ao criacionismo, sobrepondo a religião à ciência.
Nada contra que as pessoas tenham sua escolha de religião e forma de cultuar Deus, os índios tem suas formas, as nações afro tem suas formas; mas isso é do mundo privado.
Eu queria que o senhor comentasse um pouco sobre experiências semelhantes em outros países, tanto em relação a movimentos de censura ou também governos que aprovaram projetos do tipo, que limita a liberdade de expressão dos professores em sala.
Evidentemente que existem regimes mais ou menos autoritários que podem cometer esse equívoco, inclusive erros da antiga União Soviética, como analisa o historiador Hobsbawn, mas em outro teor. Do teor dessa volta a uma censura ao pensar, porque na verdade é isso, uma censura à livre expressão, ao professor sobretudo, ao pesquisador, de ter suas posições analíticas.
Sempre digo aos meus alunos qual a minha forma de pensar, e que eles não são obrigados a segui-la, que eu analiso em confronto com autores que eles podem usar também, e isso é da opção analítica das pessoas. O que não se pode é impor como ideológico o pensamento do outro e o próprio pensamento não ser ideológico.
Claro, tivemos durante a ditadura militar todo um controle sobre os professores, um controle sobre materiais, mas era de outro teor, diante de uma ditadura. Agora isso floresceu em um processo da sociedade que temos que entender, e portanto não tenho conhecimento de algo do tipo.
No fundo, essa pacificação do Kit Gay por exemplo, foi toda ao contrário, porque veio de uma pesquisa das nações unidas que percebeu uma forte violência de gênero contra os LGBT, e portanto elaboraram materiais para que a sociedade começasse a se preocupar para diminuir a violência e os preconceitos. Eles manipulam, como manipulam a questão do partido, para criar um ódio a essas pessoas.
Agora, igual a isso [Escola Sem Partido], dificilmente encontramos uma experiência ao longo da segunda metade do século 20 para cá.
Uma pesquisa divulgada na semana passada mostrou que o Brasil está em último lugar em um ranking de prestígio da profissão professor. O senhor acredita que esse dado se relaciona com a proporção que o Escola sem Partido tem tomado?
Se fazemos uma análise dos salários dos professores nos anos 1930, em comparação com as profissões de economista, arquiteto, encontramos salários bastante idênticos. O desprestígio do professor começou exatamente quando a escola pública se alargou para as classes populares e, também, com isto, a função passou a ser cada vez mais com pessoas que vinham do meio popular ou classe média baixa.
Florestan até tinha uma expressão na época: "professor é um funcionário da burguesia proveniente da classe trabalhadora". Então o desprestígio não foi só em relação ao salário, mas da própria escola pública. Você tem uma sociedade historicamente, em suas hierarquias, que nunca pautou de fato a educação como direito universal. Darcy Ribeiro dizia que a ausência da escola pública universal não era um erro da burguesia, era um projeto. E, de fato, é uma postura que não investe em ciência básica, e portanto, tudo isso é uma amálgama do desprestígio do professor.
Só que esse professor que vem das classes populares foi se preparando, e de fato hoje, de norte a sul, eles têm uma formação cada vez mais pós-graduada, e confrontam teorias. Então professores que vêm das classes populares e têm uma boa base de análise são quem estão sendo desautorizados. E não só professores. As disciplinas que os preparam para entender a sociedade.
Já na década de 1980 diziam que nas faculdades se ensinavam muita teoria, que não era necessário tanta história, geografia, sociologia, e agora retiram isso do currículo e diluem. O Escola Sem Partido é uma exacerbação disso, porque colocam o professor como estuprador, ideológico, criminoso. Instalam o ódio ao professor através da denúncia.
Se a relação pedagógica é de confiança e diálogo com o diferente, com o intransigente, portanto, isto que é preocupante, a desautorização do professor como profissional. No fundo dizem: coloquem lá um robô dizendo o que o Escola Sem Partido quer. Veja a posição das escolas privadas em relação a isso, elas dizem que entrarão na justiça caso isso seja aprovado, porque os pais não querem uma escola esquálida e com professores absolutamente acuados entre os alunos. Tudo isso, na verdade, é sobre professores e alunos da escola pública.
Como vai ficar esse clima de denuncismo dos professores a partir da posse do governo Bolsonaro?
Tudo quando passa da medida e se exacerba, o movimento de reação também é grande. Eu percebo sindicatos aqui no Rio de Janeiro municiando seus professores juridicamente. Eu estou formando professores na universidade, junto com meus colegas, e na semana passada entrei com meus alunos e digo que eu sempre deixo gravarem minha aula, mas nunca tinha restringido o uso. Agora eu peço que usem apenas privadamente com uso pedagógico, porque não vou permitir que alguém use coisas que são parciais em um contexto, contra mim.
Se todas as vezes que eu dou entrevista as pessoas pedem que eu autorize a publicação, isso tem que ser feito. Há uma orientação para os professores não entrarem na pedagogia do medo, porque é o que eles querem, auto-censura. Se colocaram em sala os mandamentos do Escola Sem Partido, colocaremos os mandamentos dos direitos dos professores e do Estado, e vamos para a luta, porque não é possível que aturemos isso.
Acho que a investida que fizeram na quinta-feira, antes das eleições, orquestrada no Brasil todo, de acuar professores, teve o efeito absolutamente oposto. Nunca vi Rede Globo e outras redes, por exemplo, defender tanto a universidade. Isso mobilizou uma certa letargia dos sindicatos, dos partidos que têm algum projeto alternativo ou democrático. Sou esperançoso, tenho andado o Brasil debatendo e digo isso, que não podemos cair na pedagogia do medo, temos que ter prudência e conversar muito com os pais e alunos.
Edição: Diego Sartorato