“Não foi um acidente, foi um crime, mas as empresas não querem nem saber. Nós fomos esquecidas”, desabafou Silvia Lafaiate, pescadora de São Mateus, no litoral do Espírito Santo. A comunidade dela vivia da pesca artesanal teve seus rios contaminados pela lama tóxica que vazou da barragem da Samarco, há três anos.
A atingida relatou a falta de atitudes da Fundação Renova, criada para cuidar das reparações pelo consórcio que também envolve a Vale e a BHP Billington. “A única coisa que quero da Renova é o respeito com a vida. Nós estamos sofrendo. Não era para eu estar aqui lutando, era para eu estar no meu cotidiano. Eu quero a minha identidade de pescadora e o meu rio de volta”, afirmou.
O depoimento de Lafaiate foi registrado durante o seminário "Balanço de 3 anos do rompimento da barragem de Fundão". Atingidos, acadêmicos, militantes e religiosos se reuniram no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (MG), nesta terça-feira (6), para lembrar o crime do Rio Doce. O evento foi organizado pela Rede de Pesquisa Rio Doce e pelo Observatorio de Conflictos Mineros de America Latina (Ocmal).
Para Letícia Oliveira, integrante do MAB que atua em Mariana, a Fundação Renova viola direitos humanos, não reconhece diversas pessoas que foram atingidas, paga irrisórias indenizações e é ineficiente nas obras – já que, após três anos, construiu apenas uma casa em Mariana.
“A Fundação Renova é uma forma de impedir a participação dos atingidos. É para maquiar e dizer que houveram decisões que, na verdade, não houveram”, aponta.
A militante avalia que a Renova investe em propagandas, e não em ações de reparação aos atingidos.
“A Vale e a BHP precisam dizer para o mundo que podem reparar esse crime para que possam continuar explorando minério de ferro. E, por isso, a Renova quer dizer que as empresas criminosas conseguem resolver o problema que criaram. Mas está claro que não conseguem”, disse.
A defensora pública do Espírito Santo, Mariane Sobral, criticou o acordo que criou a Fundação Renova e foi assinado pela Samarco, governo federal e dos dois estados afetados, chamado de Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). “Foi um acordo sem nenhum tipo de participação popular”, afirma.
A defensora também apontou que o poder público foi omisso, deixando para entidades privadas assumirem as reparações aos atingidos, e criticou o grande poder dado para a Fundação Renova para definir quem são os atingidos e como devem ser reparados.
“A maior parte dos auxílios financeiros e de indenizações foram para os homens atingidos. Falta a Renova e o poder público discutirem o direito das atingidas”, defende.
Sobral apresentou dados que apontam que, apesar das mulheres corresponderem a 49,4% da população reconhecida como atingida até o momento, correspondem a apenas 31,5% das pessoas que receberam o auxílio emergencial.
Ela criticou a falta de ações afirmativas para garantir tratamento diferenciado para grupos como mulheres, idosos e crianças. “Nós observamos na Bacia do Rio Doce que pessoas idosas morrem sem nem receber a resposta da indenização da Renova”.
Helder Magno, do Ministério Público Federal (MPF), também criticou o acordo e as ações da Fundação Renova. “Os governos fizeram um acordo de gabinete e os programas que seriam executados pela Renova foram pensados dentro de escritórios, sem ouvir os atingidos”, diz. Magno denuncia que a Fundação Renova cadastrou os atingidos sem que eles saibam para que serve o cadastro. “Como a Renova age dessa forma, impondo aos atingidos um acordo sem dar a informação adequada? Ela está cometendo um novo crime quando faz acordo com pessoas em situação de vulnerabilidade e sem informação adequada”.
Impunidade e lentidão
“São três anos lutando por reconhecimento. Hoje, os criminosos estão soltos, enquanto os meus filhos já foram sentenciados e estão contaminados pela lama tóxica da Samarco”, protesta Simone Silva, moradora da comunidade de Barra Longa (MG).
Simone cresceu na comunidade de Gesteira (MG), ouvindo o avô dizer que um monstro “lá em cima” poderia estourar e destruir a comunidade. “Mal sabia o meu avô que 13 anos depois de sua morte a profecia iria se cumprir. O monstro rompeu, matou pessoas e continua matando”, disse a atingida, em referência ao aumento de casos de depressão e tentativas de suicídio. “Em Gesteira, cinco pessoas tinham problemas mentais antes da barragem romper. Agora são mais de 60”, diz.
Ela participa do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e ressalta que os impactos do crime da Samarco se renovam a cada dia, afetando especialmente as populações mais pobres. “Um exemplo foi quando limparam o centro da cidade, tirando a lama da praça central, onde vivem os ricos, e levando para o alto dos morros, onde moram pessoas que não tem uma condição social boa”, relatou.
A moradora de Gesteira também falou das dificuldades que enfrenta como mulher, negra e atingida durante sua participação no primeiro debate do seminário, que tratou das questões de gênero, raça e classe frente à mineração. Foram realizados outras mesas de discussão, abordando temas como participação dos atingidos nos processos de decisão, reassentamento e impactos do rompimento da barragem nos povos tradicionais.
Mas o que realmente a militante foram os relatos da equatoriana Gloria Chicaiza e da boliviana Anela Cuenca, que apresentaram os trabalhos da Rede Latinoamericana de Mulheres Defensoras dos Direitos Sociais e Ambientais e trouxeram casos da participação das mulheres na defesa de seus territórios ameaçados pela mineração. “São processos muito parecidos e não é fácil ficar sem resposta. Nós estamos há três anos assim, mas nos fortalecemos quando encontramos mulheres guerreiras. Nos sentimos abraçadas, confortadas”, disse.
Para além do evento em Ouro Preto, também aconteceu o encontro de mulheres e crianças atingidas pela barragem do Fundão nos dias 04 e 05 de novembro, em Mariana (MG), que marcou o início das atividades da Marcha “Lama no Rio Doce: 3 Anos de Injustiça”. Organizada pelo MAB, a marcha irá percorrer o trajeto da lama de rejeitos, partindo de Mariana (MG) rumo a Vitória (ES). Serão mais de 650 km de marcha, passando por 14 municípios, onde serão realizadas manifestações, atos culturais, celebrações religiosas e assembleias, visando denunciar a lentidão da empresa e da Justiça na reparação dos atingidos.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira