O deputado constituinte e militante do Partido dos Trabalhadores (PT), José Genoino, concedeu entrevista à Rádio Brasil de Fato na semana do aniversário da Constituição Federal de 1988. Ele saudou a memória histórica nacional e relembrou o processo que culminou na promulgação da Carta Magna, em 5 de outubro.
Genoino acompanhou de perto os 20 meses de formulação da Constituição, e até hoje carrega um vasto acervo de documentos e memórias afetivas.
Confira os melhores momentos da entrevista concedida durante o programa No Jardim da Política:
Brasil de Fato: Qual era o caldo que se formou nessa época, após 20 anos de ditadura, para permitir que houvesse um processo tão rico como a construção da Constituição?
José Genoino: A Constituição é a lei maior de um país, e é produto de um embate político, de enfrentamento e pactuação. Não é uma norma enxuta, desidratada, sem paixão, mas é uma norma que reflete o momento em que o país vivia. Tínhamos uma Constituição outorgada de 1969, uma emenda global de 1967, também outorgada pela ditadura militar. E a ditadura começou um processo de transição negociada.
Ao mesmo tempo, havia um movimento popular muito intenso: as Greves do ABC, o movimento da carestia, a reconstrução da UNE [União Nacional dos Estudantes], a luta pela reforma agrária, os comitês de anistia e a denúncia das torturas. E havia um movimento institucional liberal, dirigido principalmente pelo então MDB [Movimento Democrático Brasileiro].
O país enfrentava uma crise, porque a Constituição em vigor estava superada. Começávamos a discutir, e essa discussão foi precedida pela derrota do Decreto Salarial do então Ministro Delfim Neto, que expurgava dos aumentos salariais a inflação. Nós derrotamos o decreto na Câmara dos Deputados. A partir daí, veio a Campanha das Diretas, que perdemos, mas já no fim de 1979 teve a aprovação da Lei da Anistia, também um momento de enfrentamento -- porque havia a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, mas colocaram a auto Anistia, a Anistia Recibo, para não investigar quem matou, torturou, os companheiros presos políticos.
Com a derrota da Emenda das Diretas e com a crise social profunda, houve o Plano Cruzado, que presidiu a eleição de 1986, em que o MDB ganhou todos os governos estaduais e a maioria no Senado e na Câmara. Por isso, era maioria na Assembleia Constituinte.
O PT defendeu naquela época, com uma bancada de 5 deputados, uma Constituinte exclusiva. Perdemos essa batalha e tivemos uma eleição de 1986 muito difícil para o PT, em que fizemos uma bancada de 16 deputados -- aqui em São Paulo principalmente puxada pela liderança de Lula, o deputado federal mais votado da história do Brasil.
A Constituição, então, nasceu em um contexto de crise política e econômica e de vazio institucional, porque a institucionalidade no país bateu no teto. A Constituição é um referencial, funciona como um grande guarda-chuva em que todos estão subordinados. Então, ela foi produto de um processo político de enfrentamento. Não foi uma coisa da academia, dos hermenêuticos, dos notáveis -- até porque recusamos a comissão dos notáveis. Foi produto de um processo político de disputa.
Nesse processo, havia duas pernas: a disputa institucional e a social. O movimento popular começou a se organizar com greves e mobilizações. A esquerda era minoria, mas estava colada nas ruas e nos movimentos, e tínhamos uma aliança como o chamado Centro Político, liderado principalmente por Mário Covas, líder do MDB na Constituinte.
Esse processo foi sendo construído com duas vertentes, que resultaram em uma das constituições mais avançadas: a disputa e a negociação; Congresso e Ruas. Este processo de elaboração foi fundamental para que a gente criasse uma Constituição que significou um referencial.
Ela nasceu assim, foi promulgada no dia 5 de outubro e foi interpretada por todos os lados porque foi ousada. A direita dizia que o país não cabia dentro da Constituição, e nós dizíamos que sim. O país dos excluídos que iria caber. A Constituição foi a primeira vez que fizemos um programa de Renda Mínima, porque transformou-se o Funrural em Aposentadoria com base no Salário Mínimo. Isso foi questionado pelo sistema dominante. Então, a Constituição trouxe o Brasil para dentro do Congresso Nacional.
O Poder Executivo estava enfraquecido, o Judiciário não era o moderador que existe hoje, ele vinha desgastado porque legitimou a Ditadura, e o Congresso foi o grande rio por onde o povo se manifestou.
A campanha das diretas, a maior campanha de massas, tinha duas palavras de ordem: Diretas Já e Mudanças Já. Então, era a ideia de mudanças, de direitos, de emprego, de políticas públicas, de defesa da nossa identidade. Foi a primeira vez em que o movimento feminista, negro, indígena, em defesa do meio ambiente, dos médicos sanitaristas que criou o SUS apareceram no Congresso. O modelo do sistema de educação, de assistência social, o código de defesa do consumidor, as grandes políticas públicas nasceram de princípios definidos pela concepção do estado de Bem-Estar Social, que lamentavelmente está sendo demolido, principalmente de 2016 para cá.
Salvo as devidas proporções das crises, também não estamos em um período muito estável. Agora, nossa Constituição está superada? Porque ela já foi 105 vezes alterada, às vezes com mudanças muito concentradas por ano, mas em uma média de quatro vezes ao ano.
É importante dar a informação de que a Constituição é uma obra, é um produto do Congresso Nacional. Não é o Presidente que faz, é o Congresso. Inclusive a de 1988, não foi o governo Sarney que fez. Lamentavelmente, teve grandes momentos em que aspectos centrais, como a ordem econômica que foi profundamente adulterada pelo projeto neoliberal de FHC. Depois, vieram as emendas relacionadas com o sistema de garantias do Estado do Bem Estar Social. Eu acho que, tão violento quanto as medidas de ordem econômica, foi a PEC 95 que estabelecesse o Teto de Gastos e fere a alma do estado social da Constituição de 1988, e os direitos e garantias individuais de uma Constituição que foi produto de uma resistência da Ditadura Militar. Muitos desses direitos estão sendo relativizados por uma visão de Estado de exceção.
Isto está maculando a Constituição, na medida em que você tem uma necessidade de avançar em outros pontos. O capítulo das comunicações, por exemplo, é uma batalha que vem desde 1998 e não avançamos. Houve um embate. O capítulo de Segurança Pública também com a visão de que é guerra, para defender o patrimônio e a ordem. O papel das Forças Armadas, que é muito atual, essa tendência à tutela militar, presente atualmente, esteve presente na discussão do Artigo 142. A questão das cláusulas relacionadas à propriedade. Na Constituição brasileira, a cláusula de propriedade é uma das únicas que se iguala à vida, uma Cláusula Petra, o que dificulta a execução da função social da propriedade.
A organização dos poderes também, temos que redefinir os poderes que emanam do voto, o Legislativo e Executivo, e o poder que é por natureza contra-majoritário, que é o Judiciário. Nessa organização há um desequilíbrio muito grande porque a soberania popular que fundamenta a legitimidade do poder está enfraquecida. É necessário discutirmos uma repactuação do país com o texto constitucional. Esse texto sempre foi questionado, desde o início, e as emendas feitas pelos governos pioraram a Constituição. E as emendas atuais estão tirando o núcleo do Estado de bem estar social da Constituição. Essa ideia de que a interpretação da Constituição é o judiciário que decide também macula a soberania popular que se expressa principalmente na carta de direitos. Isso tem que ser rediscutido em uma determinada conjuntura de correlação de força, em um debate amplo com a sociedade. Constituição não é produto de academia nem de hermenêuticos, é da luta de classes, dos confrontos, das paixões, do diálogo que pressupõe, na democracia, disputa e negociação. A constituintes foi um exemplo claro, ninguém era considerado inimigo, mas adversário, e se debatia no voto todas as questões.
Isso nos traz muito para hoje, porque todos os temas que você citou que não avançaram são os que polarizam o debate hoje: comunicação, segurança pública, forças armadas. Isso se arrasta e chega o momento que vivemos hoje, e ressalta a importância do debate democrático, algo que faz muita falta em um projeto político.
Nós negociamos com Ulysses Guimarães, tínhamos uma aliança com o centro e com as ruas, e essa aliança nos colocou para negociar com o presidente da Constituinte, um liberal coerente, que dizia que o Brasil tinha que entrar aqui dentro. Ele dizia que, tudo bem, podia entrar todo mundo lá dentro, porque ali o pessoal entrava e saía, por isso tinha rampas.
Com 30 mil assinaturas, os movimentos podiam fazer emendas. A emenda da reforma agrária chegou a ter dois milhões de assinaturas, foi a maior. Todas as emendas eram apresentadas e discutidas, e o Brasil entrou dentro do Congresso.
A Comissão da Reforma Agrária teve pauleira, quebra de microfone, mas aquilo ali era uma disputa radicalizada democraticamente. Você não eliminava, o outro não era inimigo, e essa figura não era fundamentada para criar discriminação e violência. O país entrou lá porque não tinha outro lugar para ele ir.
Tinha a derrota das Diretas, o Sarney assumiu no lugar do Tancredo... como seria a transição democrática? Essa pactuação por cima da classe dominante foi feita, porque era maioria, essa é a tendência das grandes mudanças do Estado Brasileiro. Faz-se uma revolução para que o povo não a faça. Essa pactuação tira o povo, e nós colocamos o povo como protagonista na Constituinte. Todos os temas eram discutidos. Foi a primeira vez em que se discutiu a união civil, o direito das mulheres ao seu próprio corpo, as comunidades quilombolas, indígenas. Além de temas polêmicos como Forças Armadas, capital estrangeiro, se discutiu o Brasil. Ele não teve medo de mostrar sua cara. O Brasil mostrou sua cara em dois grandes momentos: na Constituinte e nos dois mandatos do presidente Lula.
Uma discussão que cresceu muito nos últimos anos foi a Previdência Social. O atual modelo é questionado por um projeto de reforma que não foi sequer levado à votação porque não teve força política, mas que buscava acabar com a universalização do benefício.
Este debate veio desde a Constituinte. O primeiro programa de inclusão social foi a Constituinte, que fez a transformação do Funrural em Previdência universal com o salário mínimo. A ideia de um a Previdência universal para todos os brasileiros é uma ideia de igualdade e é fundamental e inegociável. Não podemos aceitar a privatização. Temos que diferenciar a Previdência Social e a complementar, mas o básico pode ser garantido.
Essa Previdência universal básica, com o financiamento tripartite, com gestão compartilhada, não está em crise nem precisa de reforma. O que o sistema financeiro quer é privatizar essa Previdência para botar nos planos privados geridos pelos bancos e grupos econômicos. Se aceitarmos isso, estamos negando uma condição que é a Constituição de Direitos. O direito é o cidadão ter uma Previdência Básica Universal no final de sua vida, assim como o direito à saúde, por isso eles querem liquidar o Sistema Único de Saúde (SUS), o direito à assistência social, à um padrão de vida civilizado. Isso é essencial.
Ou se tem uma sociedade de direitos, ou uma sociedade apartada, uma minoria cheia de privilégios e uma maioria jogada na exclusão. Essa questão da Previdência é essencial e foi uma das grandes marcas. Acho que essa repactuação de uma nova Constituição pressupõe resgatar as conquistas sociais da Constituição de 1988, algumas alteradas, porque temos que viabilizar também a viabilização dos direitos alcançados.
Ou temos uma civilização de direitos, ou temos o quê? Essa foi a grande contribuição que a Constituição de 1998 deu, que está sendo adulterada e que temos que resgatar em um processo de reformulação constitucional no Brasil. Porque a Constituição vive uma crise de legitimação, e isso é um perigo. A democracia tem que ter legitimidade. Quando a Constituição não é um referencial, não compactua as diferenças, você tem o vale tudo, que prejudica os mais fracos. (...)
A política é o espaço da liberdade, por isso é a potência dos humanos. Essa potência produz o improvável, o impossível e o que não está previsto. Por isso, a riqueza da política é apostar no ser humano, que tem coisas imprevisíveis, tanto no sentido positivo quanto negativo. Temos que ser humanistas radicais, e a política dá essa dimensão. Quando se nega a política, caímos na ditadura.
Edição: Daniel Giovanaz