No atual cenário de crise política do Brasil, a classe artística tem se manifestado de maneira contundente, se mobilizando por mais investimentos para a cultura e na luta por democracia. Uma das representantes mais vocais desta categoria é a atriz, Dira Paes, conhecida pelo grande público por trabalhos na televisão como o seriado "A Diarista", no qual interpretou a personagem Solineusa, e também no cinema, protagonizando filmes como "Ó pai, ó".
Nascida no Pará, Dira se tornou uma forte ativista na defesa dos direitos das minorias. Em entrevista ao programa No Jardim da Política, da Rádio Brasil de Fato, ela fala sobre o papel dos artistas no debate político, as questões sociais que a afligem, e as necessidades de encontrar saídas para o bem do povo trabalhador. Confira.
Brasil de Fato: Dira, o programa da Rádio Brasil de Fato, no Jardim da Política, discute política em suas mais diversas dimensões, inclusive a artística. Como você entende o lugar da política nos seus trabalhos e nos seus personagens?
Dira Paes: Acho que esse é um momento em que a gente tem que falar muito e discutir muito o que é política para cada um. Eu sempre tive uma consciência, desde a minha tenra adolescência, de que o homem é um ser político. E todas as atitudes, atividades que você desempenha todos os dias, você está tomando decisões políticas.
Eu lembro claramente de uma aula de um grande professor de literatura que fazia uma analogia, de que mesmo nós não querendo nos assumirmos como seres políticos, nós somos. Nossas atitudes, cada gesto, cada compra que você faz, você está tendo uma atitude política. Então, para traduzir em poucas palavras, eu diria que eu não consigo viver, a atriz que eu sou não sobrevive sem a cidadã. E a cidadã que eu sou me forma muito como atriz. Então o meu vínculo com as decisões que eu considero melhores para o país tem a ver com o que eu acho que é melhor para a minha vida, para a vida dos meus filhos. O que eu gostaria que fosse pra mim é o que eu quero que seja para todo mundo. Então, nesse sentido, eu acho que todo mundo, querendo ou não, é um ser político.
Como cidadã, como você tem visto esse momento político atual no Brasil?
A gente está afinado com o cenário do Brasil. Não foi um despertar de agora, com toda essa polarização. Eu trabalho desde os 15 anos de idade e sempre vi a necessidade de ter uma opinião sobre os problemas sociais do Brasil. O que mais me incomoda como atriz e cidadã é o abismo social da desigualdade, tanto em termos de oportunidade para todos, como em termos de recursos que são destinados ao combate da miséria e da pobreza. Então, como cidadã, eu acho que essa é a grande chaga do Brasil. Porque como você pode sentar numa mesa feliz, comendo um prato, quando tem milhões de pessoas passando fome?
É uma esquizofrenia o que a gente acaba vivendo. Você precisa primeiro esquecer disso, para se manter forte e lutar por isso. Porque senão você começa a deixar de ter prazer em determinadas situações porque você sabe que um irmão, um parente, um amigo, está passando necessidade, e necessidades profundas, básicas, que nem deveriam estar sendo discutidas no século XXI. Necessidades que são as mais primárias, ou seja, alimentação, educação, saúde, moradia, isso é muito básico para o ser humano. E o que mais causa revolta é saber que um país com recursos naturais tão absolutos como o Brasil, em termos territoriais, minerais, fauna, flora, de pessoal, pois a gente vê que o Brasil tem uma gama de estudiosos, de cientistas em todas as áreas, e vemos que é um país que sucumbe, um país extrativista, e nós continuamos nos comportar politicamente como colonizados, como se precisássemos de pessoas que mandam no povo porque o povo não sabe se gerir sozinho.
E eu acho que essa conclamação da sociedade tem a ver com isso. Não basta só o voto, é preciso ir além, ou seja, seguir seu candidato, ver se ele está atuando efetivamente como você esperava, jamais vender seu voto, perceber em qual governo você se sentiu amparado pelo Estado brasileiro. Entender que a corrupção ou outros males do mundo não dizem respeito a um partido, dizem respeito a um comportamento. E isso é endêmico, é crônico. E acho que é isso que a sociedade cansou e quer entender para atuar de uma maneira mais direta em relação a essas chagas brasileiras. E por isso, a classe artística não se calou. A classe artística nunca se calou. Graças aos céus, muitas pessoas que nunca se manifestavam estão se manifestando porque perceberam a gravidade do momento que o Brasil está passando.
A gente viu há algumas semanas o incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, produto desse descaso na política com a cultura. Dira, que recado que uma tragédia como essa pode passar para a sociedade?
Esse foi um recado cruel, um recado que vem com a fatalidade. A fatalidade é a última instância, depois dela, não há nada que se possa fazer para recuperar aquilo que foi perdido. No entanto, fica a lição. O Museu Nacional era um dos mais democráticos do Rio de Janeiro. Se você fosse no final de semana à Quinta da Boa Vista, você iria entender o que eu estou falando. Isso me dói muito, porque cada vez mais parece que tudo é feito para manter o povo longe de tudo o que é informação. E eu, como artista, eu quero o contrário. Eu quero que o grande público, que todo o povo tenha acesso a isso. Então me dói ver que um lugar como esse, onde existia uma certa democracia, não existe mais. E nem falar da memória do Brasil, que já é tão curta, e que está sendo aniquilada, consumida. O incêndio do Museu Nacional foi uma metáfora do que está acontecendo no Brasil. Em poucas horas aquilo virou pó. Tudo o que era sabedoria virou pó. Porque? Por causa do descaso, do destrato, do desmando, do desmazelo, e isso é o que eu vejo acontecendo com o povo, que está precisando urgentemente da gente.
Você conhece muitas realidades do povo trabalhador do Brasil. O que te preocupa mais de tudo o que você já viu nas suas andanças?
Me preocupa o pobre do produtor rural que está lá no fim do Brasil e chega um grande fazendeiro e o arranca do seu lugar, mandando ele embora sem os seus direitos garantidos. O que me incomoda tremendamente é saber que existem várias ribeirinhas que ficam mais de vinte horas na beira do Marajó, onde chegam os contrabandistas de adolescentes, ou traficantes de órgãos. Então é esse Brasil que me preocupa. Porque de uma forma ou de outra, o Brasil urbano está mais próximo das mídias sociais. Mas aquele que não tem nem um celular para dizer: "Olha, eu fui violada". Como inúmeros casos que acontecem.
Então que Brasil é esse que não consegue uma unidade em torno da questão da fome? As próprias pessoas que se referenciaram no Betinho, estão retomando a campanha porque a fome está voltando a assombrar o nosso país. Milhares de pessoas hoje estão precisando de um prato de comida. Não é sequer de escola, de hospital, de moradia. Eles precisam de um prato de comida, e isso é muito grave. Eu não aguento isso. Antes de dormir, de levantar, eu penso nisso todos os dias. Toda vez que o meu estômago ronca, eu penso naqueles que não têm. Sem falar nas crianças e nos idosos. Então acho que o bom senso nos diz que precisamos cuidar das minorias, que não têm ninguém por elas, tratando essas pessoas como se fossem nosso irmãos. Todo mundo fala: "Ah, o MST invade as fazendas, e você gostaria de ver sua terra invadida?" E eu pergunto imediatamente: "Quem invadiu primeiro?" Principalmente na minha região, na Amazônia, onde as fazendas são do tamanho de Portugal e não pagam um real de imposto. Quem invadiu primeiro o quê? Se coloque no lugar do outro. E se você fosse aquele pobre que está ali? Então é sobre isso que temos que esclarecer. Infelizmente nós temos um país que é preconceituoso, violento.
Qual o chamado você faz ao povo, aos seus fãs, nesse momento tão complicado da vida política do país?
Eu, Dira, quero dizer para o povo brasileiro, que é muito bem-vinda a participação de todos. As redes sociais vieram para ajudar a ampliar o debate político. Vamos parar de demonizar as pessoas, os partidos. O que eu acho que nós precisamos é ter consciência da nossa grandeza.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira