O encarceramento provisório da população negra, pobre e periférica aumentou depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a favor da prisão após condenação em segunda instância, em outubro de 2016. Levantamento da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DP-RJ) mostra redução no número de pessoas liberadas após as audiências de custódia - feitas após prisão em flagrante e nas quais o acusado tem o direito de ser ouvido por um juiz. O índice de soltura de custodiados caiu de 40%, em 2016, para 20%, em 2017.
“Os índices mostram a redução drástica das liberdades nas audiências de custódia de 40% para 20%. Apontam que a decisão do STF já sinalizou para o Poder Judiciário que pode se prender e antecipar pena das pessoas, quando isso é uma grande contradição”, avaliou o coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Emanuel Queiroz.
A defensoria promoveu na terça-feira um ato público em defesa da presunção de inocência, com o tema “Porque não há culpa enquanto houver dúvida”.
Segundo Queiroz, a decisão liminar do STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 43, de outubro de 2016, relativizou a presunção de inocência e não atingiu os crimes de colarinho branco, como se imaginava.
“Essa relativização da presunção de inocência, foi colocada especialmente pela grande imprensa como algo que só afligiria os corruptos, o crime de colarinho branco. Isso foi algo completamente fora do que é a realidade da malha do sistema de justiça criminal, que é seletivo na sua essência.”
A população carcerária brasileira é composta em sua maioria (de 60% a 70%) por jovens de periferia, negros e de baixa escolaridade. “Se você fragiliza essa garantia da presunção de inocência, isso não vai apontar unicamente com relação a um grupo social da elite, vai apontar contra todo o sistema. Após essa decisão do STF, houve um aumento no número de aprisionamentos provisórios no Brasil, que leva ao caos penitenciário que a gente já assiste, e a mais violência”, avalia Queiroz.
As audiências de custódia foram implementadas no Brasil em fevereiro de 2015 como meio para diminuir o número de prisões provisórias no país, que chegam a 40% da população carcerária.
No primeiro relatório da Defensoria Pública sobre essas audiências, finalizado em setembro de 2016, 93,61% dos custodiados eram assistidos pela Defensoria Pública e 70% deles eram negros. Além disso, 40,5% eram liberados nas audiências, 65% relataram terem sido agredidos e 93,5% saberiam apontar o agressor. Do total por raça, 46% de brancos e 39% de negros são soltos.
Ainda segundo ele, dados de um estudo do Ipea, de 2015, mostram que a cada 100 pessoas denunciadas e presas, 40% eram libertadas. Destas, 20% são absolvidas e 15% recebem penas restritivas de direito e outras medidas alternativas à prisão. “Por que manter essas pessoas no cárcere?”, questiona o defensor.
Um dos coordenadores do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Mateus Moro, diz que o Brasil passa por uma onda de recrudescimento punitivo, com números alarmantes. A população carcerária brasileira chega hoje a 724 mil presos. Ele destaca que São Paulo tem um terço da população carcerária do país.
“São 240 mil pessoas em 170 unidades prisionais. Após a decisão, ao menos 14 mil pessoas foram presas em segunda instância. A Defensoria Pública do estado de São Paulo é responsável por um quinto dos habeas corpus no STJ [Superior Tribunal de Justiça] e a gente ganha 40% das liminares e 50% no mérito. Ou seja, não há uma segurança jurídica, você está executando uma pena depois da decisão em segunda instância e que depois vai ser reformada em Brasília, ou no STJ ou no STF”.
Sobre as audiências de custódia no estado de São Paulo, Mateus Moro informou que entre fevereiro de 2015 e dezembro de 2016 a média era de 50% de soltura e 50% de prisão. No levantamento feito este ano, de fevereiro a junho, a média de manutenção da prisão chegou a 65%. “Se pegar tráfico de drogas que não envolve violência, a porcentagem de manutenção de prisão chega a 80%, grande parte delas com quantidades irrisórias, e sempre a população pobre, a população negra”.
A coordenadora do Núcleo contra a Desigualdade Racial da DPRJ, Lívia Cásseres, destacou que o sistema judiciário brasileiro criminaliza a população negra. Segundo ela, a presunção de inocência nunca foi uma realidade para essa parcela da população.
Para Lívia, a relativização da presunção de inocência pelo STF é um retrocesso e marca a impossibilidade de se romper com esse ciclo de violência institucional.
Edição: Agência Brasil