11 de setembro

Artigo | O modelo de golpe que depôs Allende segue vigente na América Latina

Atílio Borón analisa como o golpe perpetrado em 11 de setembro de 1973 criou um padrão a ser seguido no continente

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"Em vez de honrar a figura do presidente-mártir e sua obra, muitos se apegaram às críticas que o consenso neoliberal dominante formulou"
"Em vez de honrar a figura do presidente-mártir e sua obra, muitos se apegaram às críticas que o consenso neoliberal dominante formulou" - Reprodução

Dias atrás, em 4 de setembro, para ser mais preciso, se cumpriu 48 anos do triunfo de Salvador Allende nas eleições presidenciais do Chile de 1970. Com o passar dos anos se comprova, com dor, que sua figura não colheu a valorização que merece, mesmo dentro de alguns setores da esquerda, dentro e fora do Chile. 

Em vez de honrar a figura do presidente-mártir e sua obra, muitos se apegaram às críticas que o consenso neoliberal dominante formulou sobre sua gestão, sem oferecer uma análise alternativa que considerasse as dificílimas, extremamente adversas condições que rodearam seu acesso ao La Moneda e todo seu governo. 

O advento da “democracia de baixa intensidade” no Chile pós-Pinochet [Augusto Pinochet foi ditador do país entre 1973 e 1990] – produto de uma supervalorizada transição cujas limitações econômicas, sociais e políticas são hoje evidentes – corrigiu só em parte a subestimação que havia sofrido a figura de Allende e o governo da Unidade Popular. Não obstante, quase 30 anos após uma decepcionante transição que acentuou as desigualdades da sociedade chilena e sua dependência externa, as coisas começam a mudar e, afortunadamente, se notam numerosas tentativas de revalorizar seu fértil legado. 

Trata-se de um ato de estrita justiça porque, como manifestamos em mais de uma ocasião, Allende foi o precursor do “ciclo de esquerda” que moveu a América Latina (e o sistema interamericano) até sua pavimentação no final do século passado [com a eleição de Hugo Chávez em 1998]. As experiências vividas na Venezuela com Hugo Chávez, no Equador com Rafael Correa, na Bolívia com Evo Morales onde se recuperaram os recursos naturais, têm no governo de Allende um luminoso precedente na nacionalização da mineração do cobre que estava nas mãos dos oligopólios norte-americanos, e na nacionalização bancária, a expropriação dos principais conglomerados industriais e a reforma agrária. Levando em conta asa condições da época, começo dos anos setenta, o que fez o governo da UP foi uma proeza em um país rodeado de ditaduras de direita e atacada com sanha pelos Estados Unidos. 

De estrita justiça, dizíamos, porque Allende foi um homem extraordinário de Nossa América. Um socialista sem renúncias, um anti-imperialista sem concessões, um latino-americanista exemplar. Quando Cuba padecia de um isolamento quase completo e Che iniciava sua última campanha na Bolívia, Allende assumiu nada menos que a presidência da Organização Latino-americana de Solidariedade (Olas) para apoiar a ilha rebelde e o comandante heroico. Era então senador por seu partido e não foram poucas as vozes que se levantaram para reprova-lo por seu incondicional apoio à ilha caribenha e à insurgência que brotava não só na Bolívia pelas mãos de Che, mas em quase toda a América Latina. 

Eu vivia no Chile nestes anos e fui testemunha da campanha de difamações, agressões, insultos e escárnios que se descarregou contra ele. O jornal El Mercúrio, uma das expressões mais indignas do jornalismo latino-americano – na verdade, não é jornalismo, mas uma propaganda e nada mais – o atacava diariamente em suas páginas políticas e em suas opiniões editoriais, invariavelmente acompanhadas por uma caricatura que reproduzia o líder socialista na carta do rei (K) o naipe do pôquer, a metade superior empunhando uma metralhadora e sustentando em suas mãos o sino do Senado na parte inferior. A mensagem era claríssima: Allende não era nada além de um guerrilheiro castrista que havia se ocultado em pele de cordeiro de um democrata e que a partir de sua posição no Senado enganava os chilenos. 

Este também era o diagnóstico da CIA, que detectou cedo o perigo que sua figura representava para os interesses dos Estados Unidos. Já na campanha presidencial de 1964 a agência havia mobilizado grandes recursos para impedir o possível triunfo da coalizão de esquerda que o postulava para o cargo. Documentos recentemente desmascarados demonstram que destinou para tais fins US$2,6 milhões para financiar a campanha de Eduardo Frei, paladino da Democracia Cristã e da malfadada “Revolução em liberdade” que se propunha como alternativa à Revolução Cubana. E outros US$3 milhões para financiar uma campanha de terror onde a figura do dirigente socialista era apresentada como a de um monstro que enviaria crianças chilenas para estudar em Cuba ou na União Soviética e acusações deste estilo. No total, foram gastos uns US$45 milhões de dólares se atualizados os valores. 

Do que foi dito acima, se destaca com extrema clareza as razões pelas quais Washington se opôs desde a noite de 4 de setembro de 1970 à possibilidade de que Allende assumisse a presidência da República. Havia triunfado na eleição popular, mas por não alcançar a maioria absoluta precisava ser ratificado como presidente pelo voto do Congresso Pleno. Sua vitória era um resultado inaceitável em plena contraofensiva imperialista, e o dinheiro investido para frustrar a chegada de Allende ao La Moneda foi muito maior que o canalizado para a eleição anterior, ainda que todavia não haja um consenso sobre a cifra exata. Os Estados Unidos se encaminhavam para uma derrota inevitável no Vietnã e haviam saturado o continente com ditaduras militares. Allende era um grito de guerra contra o império e para Washington isso era totalmente inadmissível. Era preciso acabar com ele de qualquer forma. 

Segundo a documentação da CIA, em 15 de setembro de 1970, poucos dias depois das eleições, o presidente Richard Nixon convocou Henry Kissinger, Conselheiro de Segurança Nacional; Richard Helms, Diretor da CIA e William Colby, Diretor Adjunto e o Fiscal Geral John Mitchell para uma reunião do salão oval da Casa Branca para elaborar a política que deveria ser aplicada após as “más novas” que vinham do Chile. Em suas notas, Colby escreveu que “Nixon estava furioso” porque estava convencido que uma presidência de Allende potencializaria a disseminação da revolução comunista pregada por Fidel Castro não só no Chile, mas no resto da América Latina. Nessa reunião propôs impedir que Allende fosse ratificado pelo Congresso e chegasse à presidência. A mensagem escrita por Helms, por sua vez, expressava com clareza visceral a mescla de ódio e raiva que o triunfo de Allende provocava no personagem ordinário de Nixon. 

Segundo Helms, suas instruções foram as seguintes: “uma chance em 10, talvez, mas salvem o Chile”; “vale a pena o gasto”; “não envolver a embaixada”; “não se preocupar com os riscos implicados nesta operação”; “destinar 10 milhões de dólares para começar, e mais se for necessário fazer um trabalho de tempo completo”; “mandemos os melhores homens que tivermos”; “imediatamente, façam com que a economia grite. Nenhuma porca e nenhum parafuso par ao Chile”; “em 48 horas quero um plano de ação”. 

E isso foi o que aconteceu, desde o assassinato do general constitucionalista René Schneider, até o recrutamento de grupos paramilitares cujas ações terroristas eram atribuídas à fantasiosas brigadas de esquerda, as mesmas que a imprensa canalha da época, com o El Mercúrio encabeçando, propagava com fervor para alimentar a crença de que o triunfo da Unidade Popular era sinônimo de caos, destruição e morte no Chile. Mas a intervenção dos Estados Unidos contemplava também pressões diplomáticas, o desabastecimento programado de artigos de primeira necessidade para fomentar o mal humor da população, a organização de setores médios para lutar contra o governo (os caminhoneiros estavam entre os setores mais importantes) e a canalização de enormes recursos para financiar os mais revoltos e atrair oficialmente os militares para a causa do golpe. 

Se olhamos o panorama atual da América Latina e do Caribe veremos que pouco ou nada mudou. Por isso é necessário voltar a estudar minuciosamente o que aconteceu no Chile de Allende. A atuação do imperialismo em Nossa América, e especialmente na vanguarda formada pelos países membros da ALBA, não difere hoje da mesma agenda que a CIA e as outras agências do governo estadunidense aplicaram com brutal selvageria no Chile de Allende. 

Seria ingênuo pensar que hoje, no salão oval da Casa Branca, Donald Trump convoque seus assessores para elaborar estratégias políticas distintas às utilizadas para derrubar e causar a morte de Allende. O manual de operações da CIA e outras agências de inteligência do governo dos Estados Unidos para fazer frente às resistências que se levantam contra o imperialismo e para derrubar governos dignos, que não se ajoelham diante das ordens da Casa Branca, não mudou muito nos últimos cinquenta nãos. Isso é verdade, como estamos vendo nos casos da Venezuela e da Nicarágua. 

Informações inquestionáveis demonstram a estreita vinculação entre os líderes de oposição destes dois países e os mais sórdidos representantes da direita neofascista nos Estados Unidos. Com relação à oposição venezuelana, já é fato conhecido. Mas dados muito recentes demonstram também a íntima vinculação existente entre os radicalizados opositores de Daniel Ortega e os organismos de inteligência e fontes financeiras da direita em Washington [4]. Quem se opõem ao sandinismo não tem receio nenhum de ser fotografado com personagens tão vergonhosos do ponto de vista da democracia como Ted Cruz, Marcio Rubio e Lleana Ros-Lehtinen, representantes da máfia anticastrista de Miami, e assim se lança uma dúvida sobre os supostos democratas nicaraguenses. Se realmente quisessem a democracia em seu país, como propagam aos gritos, jamais deveriam ter acudido aqueles terroristas amparados pelo Congresso e por sucessivos governos dos Estados Unidos. 

Como diz a canção de Violeta Parra: “el león es un sanguinario en toda generación” [“o leão é sanguinário em toda geração”, em tradução livre]. O imperialismo não muda. Em seu inexorável processo de decadência e decomposição se tornará cada vez mais violento e criminoso. Hoje, quase meio século depois da grande jornada que o Chile começou pelas mãos de Salvador Allende, não nos esqueçamos das eleições que lhe deram o governo e não baixemos a guarda – nem por um segundo! – diante de tão perverso e incorrigível inimigo, quaisquer sejam seus gestos, retóricas ou personagens que o representem. E tenhamos em conta que aqueles que acodem à Roma americana para buscar apoio diplomático, cobertura midiática, dinheiro e armas para derrubar seus governos jamais poderão dar nascimento a algo bom em seus países. 

*Atilio Borón é doutor em Ciência Política pela Harvard University e professor titular de Filosofia Política da Universidade de Buenos Aires, na Argentina

 

Edição: Portal Vermelho | Tradução: Mariana Serafini