Mais de 45 guerrilheiras que resistiram à ditadura militar brasileira pela Ação Libertadora Nacional (ALN) testemunham que as mulheres não foram linha auxiliar na luta armada contra a repressão. Essas memórias fazem parte do livro "Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN", da historiadora Maria Cláudia Badan Ribeiro.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora apresenta reflexões sobre o legado emancipatório dessas rebeldes e desmonta equívocos e preconceitos difundidos pelos agentes da ditadura militar. As militantes romperam com sociedade e família para integrarem a frente de batalha.
"Historicamente, no Brasil, a figura do desobediente político é sempre do homem, a mulher fica reservada ao lar ou tem uma pequena esfera de ação dentro das tarefas do cotidiano. Quando a mulher tinha alguma punição, diziam que ela tinha feito aquilo levada por alguém, nunca como uma decisão pessoal e independente, como se essa mulher não tivesse política na cabeça. Era uma questão que a repressão e a imprensa da época tentavam difundir, de que a mulher não tinha autonomia de militância, não era um ser político e tinha que ficar em casa".
Leia a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato -- Como se deu o protagonismo feminino na ALN na resistência aos anos de chumbo?
Maria Cláudia -- Eu quis explorar o chamado setor de apoio na organização, porque sempre se associa setor de apoio e mulheres vinculando ao papel maternal de cuidar e eu quis mostrar que isso não era realidade.
Isso também aconteceu em outras organizações, mas na ALN existia maior liberdade de ação em que a mulher era protagonista da história e da luta. Eu quis mostrar que a figura da guerrilheira de armas na mão é importante, mas ela também pode ser muito abstrata se desconsidera o funcionamento real de uma organização.
Era definido, por exemplo, setor de apoio e logística da ALN, um processo que o então professor Joel Rufino participava com sete mulheres em volta. Então falavam que ele era amante dessas mulheres, mas, na verdade, elas estavam militando pela ALN, mas sempre aparecia como ele encabeçando o processo.
Na realidade, era uma rede de apoio que mantinha a organização: elas ajudavam a tirar gente pela fronteira, davam dinheiro, emprestavam o carro para fazer ação e empregavam gente que tinha sido despedida dos empregos, já que não se podia ter atestado ideológico. Enfim, são vários os gestos que mostram o compromisso político dessas mulheres.
Então houve uma continuidade, não uma ruptura. O próprio Carlos Marighella era um dirigente cercado de mulheres e estimulava muito a militância delas. O Marighella tinha uma visão diferente: ele tentava convencer os companheiros de deixarem suas mulheres participarem das reuniões, trazerem os problemas sociais da dona de casa.
Inclusive, por exemplo, os acordos entre o Marighella e Cuba para treinamento guerrilheiro, os cubanos não queriam aceitar as mulheres. O Marighella mandou a Zilda Xavier Pereira para Cuba para dizer aos cubanos que se as mulheres não participassem do treinamento rural, onde principalmente elas eram proibidas com a justificativa que causavam problemas na tropa, ele não ia aceitar o acordo e ninguém mais ia treinar. O Marighella defendeu até o fim a participação das mulheres na luta da ALN.
Uma série de mulheres foi para Cuba fazer treinamento, outras fizeram aqui; minimamente, todas tiveram algum contato com arma de fogo para se defender. O homem nem sempre fez parte de ação armada ou era bom atirador.
Elas se identificavam com a horizontalidade, porque a organização não era como um partido com hierarquia muito rígida, a ALN dava espaço para apoios e em qualquer lugar que você pudesse militar, no setor estudantil, junto aos operários.
No livro, eu considero o papel das associações de bairro e movimentos de mulheres que foram anteriores à luta armada. A ALN saiu do Partido Comunista e levou muitas pessoas de lá. Uma das pioneiras da ALN, na realidade, era a chamada Liga Feminina da Guanabara, que era um grupo de mulheres que militava no partido, algumas que ajudaram pessoalmente o Marighella, mas não aderiram a ALN.
Então não foi um rompimento total, eu tentei mostrar essa luta como um processo e quis trabalhar com a militância feminina porque eu percebi que ela era muito rede. A luta armada não foi só violência e eu quis mostrar isso.
A luta armada foi uma experiência de bastante importância para a história do Brasil e há uma certa dificuldade em lidar com isso até hoje, principalmente quando as mulheres fazem parte.
Como você analisa a invisibilidade dada às mulheres guerrilheiras, mesmo quando integravam a frente de batalha?
Historicamente, no Brasil, a figura do desobediente político é sempre do homem, a mulher fica reservada ao lar ou tem uma pequena esfera de ação dentro das tarefas do cotidiano.
Existe uma pesquisa muito interessante que fala como as mulheres chilenas começaram a militar politicamente de maneira mais incisiva a partir de grupos de mulheres donas de casa. Eu acho que no Brasil também aconteceu um pouco disso.
Foi um caminho de crescimento pelo contexto em que se vivia: a mulher saiu para o mercado de trabalho, foi para a universidade, ocorreu o êxodo rural, então ela viu os campos de vida mais abertos, inclusive a militância. Elas começaram a se colocar publicamente, com certas dificuldades, claro, porque o mundo político sempre foi muito masculino.
Agora, essa invisibilidade, de qualquer maneira, eu mostro no livro que também ajudou, porque o fato de a mulher nunca ser suspeita de entrar em um assalto, por exemplo, também a protegia. Essa invisibilidade foi causada pela ditadura, porque as mulheres que participaram da luta armada, geralmente, eram inocentadas na Justiça Militar, porque diziam que elas tinham sido levadas a fazer ações por conta de seus namorados, maridos, irmãos... o que não era verdade.
De alguma maneira, os advogados dos presos políticos também usaram esse artifício para liberar as mulheres, para dizer que elas não eram culpadas pelas ações, que não tinham panfletado ou feito pichação.
A ditadura criou a ideia da "loura dos assaltos", que também foi uma maneira de desvalorizar a luta e de transformar a mulher em uma figura desviante do papel que era aceito na sociedade.
Em todas as ditaduras, como na Espanha e na maior parte dos países latino-americanos, o arcabouço prático e jurídico era desmerecer a mulher e sua capacidade política, resumindo como a mãe de família, cuidadora dos filhos e da casa, nunca envolvida em nada que fosse público. É um pensamento conservador que existe até hoje.
O modo de agir fechado de todo o regime militar era baseado em desmobilizar politicamente o homem e, principalmente, a mulher, porque ela tem um espírito "pacífico" na visão da repressão. Então a ditadura limitou o espaço da mulher ao lar.
Nos documentos da Justiça Militar e na própria imprensa, aparecia muito "mulher de fulano foi envolvida sentimentalmente e fez processos para a organização porque estava apaixonada". Isso foi uma maneira da repressão não chamar a atenção para a militância feminina como independente e autônoma.
Isso não foi uma postura da mulher, nenhuma delas queria ser colocada como coadjuvante ou dependente do marido, muito pelo contrário. Muitas delas entraram na luta armada tendo pais da repressão ou um parentesco com ministros da ditadura, então elas foram muito valentes ao romper com a família e a sociedade para estar na militância.
No livro, eu também abordo como foi a volta dessas mulheres à sociedade depois do exílio ou da prisão. Muitas eram adolescentes. Tem histórias de mulheres que foram presas com os filhos ou que tiveram o parto na prisão.
A ALN não teve um fim formalizado, ela acabou por perseguição e repressão. Essas mulheres se dedicaram muito, deram tudo o que tinham e a luta custou a vida de muitas. Era a luta pela sobrevivência, pela justiça. Então o protagonismo também é delas, porque foram vanguarda em tudo o que pensaram e fizeram.
Eram feministas?
As mulheres estavam em um processo de liberação, o feminismo como a gente conhece hoje ainda não tinha chegado no Brasil. Existiam muitas mulheres que estavam na universidade e tinham contato com leituras como Simone de Beauvoir e outras referências europeias ou estadunidenses que chegavam aqui.
Mas, naquele contexto, as mulheres estavam mais preocupadas em derrubar a ditadura do que falar mais de si. Eu não posso dizer que o movimento de mulheres contra a ditadura, ainda que na luta armada, fosse feminista. O movimento feminista enquanto teoria e prática é posterior e quem se engajou naquela luta se propunha a destruir a ditadura sem saber se no dia seguinte estaria viva.
Mas já se questionava todas as amarras para a vida pessoal, sexual e sentimental da mulher. E isso não só no Brasil, essa liberação se deu no mundo todo, principalmente a partir dos anos 1970.
A Comissão Nacional da Verdade estimulou essas mulheres a falarem mais sobre o assunto?
Eu acredito que com as comissões da verdade, o Brasil passou a olhar um pouco mais para essa questão, mas eu não sei até que ponto isso envolveu a sociedade. Não foi feito um debate amplo, ela mobilizou alguns núcleos, movimentou a sociedade, mas tem muita gente que nem sabe o que é. Existem pessoas que pedem a volta da ditadura sem nem saber o que foi. Ela trouxe muita documentação, muitos testemunhos e permitiu a mulher de falar o que viveu sem ser sob tortura. Isso é muito positivo. O primeiro fundo de documento espontâneo de histórias foi a Comissão da Anistia.
Isso deu voz a mulheres, homens e crianças que sofreram, porque o Estado se colocou no papel de repressor e culpado. Isso se tornou legítimo e as mulheres se apropriaram dessa luta valorizando suas trajetórias. A Comissão Nacional da Verdade liberou a fala, mas, infelizmente, sua duração foi rápida.
Depois, veio as Clínicas do Testemunho para falar dos casos de estupro, que ainda são considerados privados no Brasil. Essa parte não avançou muito na Comissão, na história do país e nem em trabalhos feitos sobre mulheres. Além disso, cada militante que viveu essa experiência trágica precisa de tempo para poder falar. É uma questão delicada, mas eu acho que deveria se investigar mais sobre isso.
As mulheres também começaram a escrever suas memórias, mas não conseguem espaço na imprensa e nas editoras. Existe uma política de apagamento dessas experiências, em que se elege algumas e se despreza outras.
Edição: Juca Guimarães