“Eu perdi a vista esquerda na manifestação. O policial mirou e atirou. Sou pai de família, com dois filhos para criar”. O relato é de Clementino Pereira. Ele participava da manifestação ocorrida em Brasília no dia 24 de maio, na qual centenas de milhares de pessoas pediam a saída de Michel Temer, e foi uma das vítimas da repressão policial ocorrida no dia.
Por casos como o de Clementino, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados realizou, nesta quarta-feira (21), uma audiência pública sobre violência policial contra manifestantes. Após as contribuições de diversos debatedores – jornalistas, militantes e vítimas –, o grupo reunido recomendou que os parlamentares passem a discutir a regulamentação de um protocolo nacional que estabeleça diretrizes para atuação das forças de seguranças durante protestos.
A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que solicitou a realização da audiência, rememorou o ocorrido na data. Em sua opinião, os comandos da polícia, bem como governadores e secretários de Segurança, devem ser mais responsabilizados pelas arbitrariedades: “Nós tentamos diálogo no último dia 24 maio. Nossa missão [enquanto parlamentares] era tentar prevenir qualquer ação violenta do Estado. No entanto, a manifestação sequer conseguiu instalar-se [na esplanada dos Ministérios]. Esses comandos [das corporações] estão ferindo a democracia no Brasil”, opinou.
“Desde que ocorreu o golpe [em 2016], a gente percebe que a relação com as forças de segurança tem mudado. A repressão tem crescido”, afirmou Oliver Kornblihtt, do Mídia Ninja. Enquanto mostrava vídeos da repressão policial em Brasília, ele comentou: “O que a gente registrou foi um uso sistemático e excessivo da força policial por três ou quatro horas. Eles sempre dizem que força empregada é proporcional. Essas imagens mostram claramente que não é assim. O que se vive cada vez mais são verdadeiras batalhas”.
Integrantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Iara Moura se posicionou de forma similar. “Esse tema está inserido em um contexto maior, de criminalização dos movimentos sociais e de limitação ao exercício da liberdade de expressão”, indicou.
Wanderley Pozzebon, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, mencionou um dossiê elaborado pela entidade sobre a repressão a profissionais da comunicação naquela data.
“Foram nove jornalistas [agredidos]. Houve uso desproporcional de força, inclusive com emprego de armamento letal”, ressaltou. Pozzebon também denunciou o uso de armas letais durante o protesto, apresentando o registro em vídeo e fotos do momento. “Quando descobriram que estavam sendo filmados, foram para cima dos jornalistas. Um deles saca a arma atira em direção ao pé do jornalista”, complementou.
Relato
Daniel Sabino dos Santos, médico que atendeu Clementino, também participou da audiência pública: “Como milhares de cidadãos brasileiros, eu estava protestando contra a reforma trabalhista e previdenciária. O que a gente viveu naquele dia foi impressionante. Os tiros vinham de todos lados. Os helicópteros também jogavam bombas. A sensação é de que não havia para onde correr. Eu passei a me sentir não mais em um protesto, mas em um Pronto Socorro a céu aberto”.
O médico criticou os equipamentos usados por policiais na contenção de manifestações. Segundo ele, até mesmo o gás de pimenta, dependendo do grau de exposição e da predisposição da vítima, pode levar a choques anafiláticos e à morte.
“Me espantou, como médico, a permissão dada aos policiais de usar equipamentos cujos danos são irreversíveis. É o caso do Clementino, que perdeu a visão com uma bala de borracha. Nada trará seu olho de volta. Parece que no Brasil a vida e a integridade física têm menos valor que os bens materiais. É um absurdo que se permita o uso de artefatos com esse poder lesivo”, lamentou.
Propostas
Diversos participantes, convidados e parlamentares, defenderam a urgência de um protocolo de âmbito nacional que uniformize as diretrizes de atuação policial nesses casos. Um deles foi Igor Felippe dos Santos, parte da coordenação da Frente Brasil Popular (FBP) no DF.
Santos, fazendo referência às ideias constantes no Plano Popular de Emergência da FBP, defendeu a desmilitarização das polícias no país, integrando-as com as polícias civis e implementando novas formas de atuação e treinamento.
“O aparato repressor não foi democratizado durante o processo constituinte. Por isso, até hoje uma das bandeiras defendidas pelo movimento popular é a desmilitarização da polícia. A PM trata o cidadão que se manifesta não como uma pessoa portadora de direitos, mas como um inimigo”, resumiu.
Geraldo Villar Correa, defensor público da União, defendeu alterações na legislação: “Nós precisamos ampliar a discussão. Também é preciso avançar nos marcos institucionais e normativos”. De acordo com sua visão, o crime de desacato deveria ser extinto, já que serve como “pretexto para detenções”.
Segundo o deputado federal Luiz Couto (PT-PB), que presidiu a sessão com Chico Alencar (PSOL-RJ), os secretários de Segurança Pública de Goiás, Distrito Federal e São Paulo foram convidados – “com insistência” – para participarem da audiência pública. Nenhum deles compareceu.
Edição: Vanessa Martina Silva