Existe um senso comum [na África do Sul] de que os universitários representam a elite, então não seria possível que passem fome. Mas isso é um mito. Na verdade, as evidências disponíveis sugerem que os estudantes estão mais expostos à insegurança alimentar – ou seja, não têm acesso a alimentos nutritivos adequados diariamente – que outras parcelas da população em geral.
Analisei uma série de estudos conduzidos em universidades sul-africanas nos últimos cinco anos. As pesquisas apontam que, em média, quase um terço dos estudantes das universidades do país vive em situação de insegurança alimentar. Mas esse número pode ser ainda muito maior, já que alguns entrevistados podem sentir vergonha de admitir que são pobres e passam fome.
As estatísticas oficiais dão conta que 26% da população mais ampla do país enfrenta insegurança alimentar. Um motivo óbvio para a maior vulnerabilidade entre estudantes nesse sentido é que eles saem efetivamente da casa dos pais, mas ainda não estão empregados, então contam com baixa ou nenhuma renda e dependem do apoio financeiro da família, de bolsas de estudos ou de financiamento estudantil.
Há uma série de motivos por trás do alto índice de fome entre universitários. Um deles é o fato de que muitos são de famílias pobres – a pobreza atinge 55% da população do país –, além do alto custo de vida.
Mas o marcador mais forte de insegurança alimentar entre universitários é a raça – um legado abominável do apartheid. Por exemplo, 24% dos estudantes brancos, mas 79% dos universitários negros africanos da Universidade do Estado Livre estavam em situação de insegurança alimentar em 2013.
Apesar de a democracia sul-africana ter hoje 23 anos, ainda não há sinais de melhora em muitos indicadores importantes de desigualdade, incluindo a distribuição racial da fome.
A insegurança alimentar entre universitários não se restringe à África do Sul. Estudos em campi dos Estados Unidos identificaram que entre 14% e 59% dos estudantes estão nessa situação, enquanto a prevalência nacional é de 14,5%. Assim como na África do Sul, o risco também é desproporcionalmente maior entre estudantes negros nos EUA.
Como os estudantes enfrentam isso
As consequências da insegurança alimentar entre universitários podem ser bastante graves. A fome pode prejudicar o desempenho acadêmico ou mesmo levar ao abandono dos estudos. Também pode provocar problemas psicológicos e psiquiátricos, como ansiedade, depressão e até mesmo tendências suicidas.
A fome reduz a capacidade de concentração nos estudos e atrapalha a fluência da produção escrita e o bom desempenho nas provas. Há pesquisadores que sugerem que não ter acesso a níveis adequados de nutrientes e alimentos seguros pode ser um dos motivos que explique por que quase metade dos universitários sul-africanos nunca se forma.
A resposta dos estudantes à insegurança alimentar e à fome é encontrar fontes alternativas de alimentos, incluindo fazer refeições com amigos ou familiares. Eles também racionam o consumo, comendo alimentos mais baratos, apenas ingerindo líquidos ou jejuando. Pedem dinheiro emprestado ou buscam trabalho para poder arcar com mais comida e de melhor qualidade. Mas o comprometimento com um trabalho reduz o tempo e a energia que poderia ser dedicada aos estudos.
Intervenções
O Esquema Nacional de Apoio Financeiro ao Estudante (NSFAS) oferece empréstimos para universitários pobres pagarem mensalidades, moradia e despesas pessoais, além de fornecer também tickets para refeições. Mas, muitas vezes, os recursos e benefícios chegam atrasados. Além disso, o valor dos tickets não é suficiente.
Universidades, organizações não governamentais e mesmo estudantes estão tentando ajudar. Muitas instituições de ensino criaram bancos de alimentos e hortas e passaram a oferecer vale refeições e café da manhã ou almoço gratuito. A Universidade do Estado Livre lançou a campanha “Nenhum Estudante com Fome”. ONGs como a Stop Hunger Now e Gift of the Givers estão contribuindo com a alimentação de milhares de universitários. Uma aluna da Universidade do Cabo Ocidental criou uma página no Facebook chamada “Fairy Godmother”, onde os estudantes que passam dificuldade escrevem sobre suas necessidades financeiras e convidam outras pessoas a contribuírem com doações.
Essas iniciativas oferecem um apoio essencial para os universitários que enfrentam a fome, mas tendem a não ser coordenadas nem receber financiamento suficiente. Em geral, dependem da generosidade dos funcionários e dos recursos de cada instituição de ensino – o que só reproduz desigualdades já existentes entre as universidades mais ricas e as mais pobres.
Além disso, acadêmicos e funcionários não deveriam ser responsáveis pela alimentação de seus estudantes. Em última análise, essa é uma responsabilidade do governo. O direito à alimentação está na Constituição sul-africana, mas ainda não é realidade para os universitários do país.
A fome nos campi da África do Sul é uma crise invisível que deve ser priorizada no mais alto nível das políticas públicas. Uma gestão eficiente no NSFAS é necessária e urgente para garantir que os recursos cheguem aos estudantes no tempo certo.
O compromisso do governo com uma educação superior gratuita para estudantes pobres e da classe trabalhadora deve incluir não só o auxílio em termos de mensalidades e custos, mas também de necessidades básicas, principalmente alimentação. Isso exige uma nova visão para o financiamento do ensino superior na África do Sul, que leve em consideração a realidade cotidiana de fome e privação dos universitários.
*Stephen Devereaux é pesquisador de Estudos do Desenvolvimento na Universidade de Sussex e bolsista da Fundação Nacional de Pesquisa da África do Sul e do Newton Fund.
**Artigo originalmente publicado em The Conversation, baseado na palestra do autor no Colóquio Nacional sobre Acesso à Alimentação para Estudantes nas Instituições de Ensino Superior Sul-Africanas em 14 de agosto de 2018.
Edição: The Conversation | Tradução: Aline Scátola