Enquanto o Senado argentino se prepara para votar a legalização da interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana, no Brasil, a audiência sobre descriminalização do aborto continua no Supremo Tribunal Federal (STF). Rosa Weber, ministra relatora da ação apresentada pelo PSOL e o Instituto Anis em março de 2017, convidou 53 expositores, incluindo integrantes de organizações e pessoas físicas.
A ação solicita que o aborto seja descriminalizado até a 12ª semana em todos os casos. Atualmente, o aborto no Brasil é legal apenas em casos de estupro, de gestação de fetos anencéfalos ou caso haja risco de vida para a mulher.
A audiência começou na sexta-feira (3), com a exposição de cientistas e profissionais da saúde. O debate iniciou nesta segunda com a participação de representantes religiosos.
Em entrevista à Rádio Brasil de Fato, Carla Vitória, advogada, militante da Marcha Mundial das Mulheres critica o fato de que os argumentos apresentados até agora na audiência sejam "na maior parte, feitos por homens e muito pouco científicos".
Após o término da audiência, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, deve se manifestar em até dez dias sobre o tema. A partir do parecer de Dodge, Rosa Weber emitirá seu voto e deverá submetê-lo ao plenário do STF. Para Vitória, apesar da votação ser um "cenário incerto", a audiência pública "está servindo para colocar em pauta e informar sobre a realidade do aborto no Brasil".
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: É a primeira vez que o supremo está pautando a descriminalização do aborto no Brasil?
Carla Vitória: Em termos da legalização para todas as mulheres é a primeira vez. O STF até agora já discutiu alguns tipos de restritivos e ampliou o direito das mulheres em relação ao acesso ao aborto, como por exemplo, a questão dos anencéfalos que você acabou de citar, ela foi fruto de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) que foi votada em 2012.
Na Argentina o debate está acontecendo na Câmara e no Senado, porque aqui no Brasil o debate caminhou para o Judiciário e não para o legislativo, tem a ver com o conservadorismo no Congresso brasileiro?
São diversos fatores. Acho que o que você citou é o fundamental. É um congresso extremamente conservador que, pelo contrário, persegue os direitos das mulheres. Vimos nos últimos tempos tentativas de restringir o acesso ao aborto inclusive nos casos em que ele é legal. É um congresso que tem uma participação feminina muito pequena, são apenas 9% de deputadas, enquanto na Argentina, desde '94 tem a cota de 30% de mulheres. Então, todos esses fatores eles acabam interferindo.
Outro fator fundamental é que a votação no congresso argentino não é algo que ocorre do dia pra noite. Foram 15 anos de campanha pela legalização do aborto, onde as mulheres se encontraram anualmente nos encontros feministas, o que culminou neste projeto que está sendo apresentado pela sétima vez. Já no nosso caso, o STF tem sido há algum tempo, um certo defensor de algumas liberdades fundamentais, então ele votou questões muito importantes como por exemplo: a oficialização da união homoafetiva, e agora, toda essa mobilização em torno da descriminalização do aborto.
É possível fazer uma avaliação sobre o que esperar da decisão que virá do STF?
A audiência pública está servindo para colocar em pauta e informar os ministros sobre a realidade do aborto no Brasil. Por isso foram escolhidas pessoas para falar de acordo com a competência técnica e a atuação no tema, e respeitando uma paridade de posições, gente que defende a vida das mulheres e gente que quer que o aborto siga sendo criminalizado.
A própria propositura dessa audiência, feita pelo PSOL em parceria com o Instituto Anis, teve a ver com um cálculo político da posição do STF em relação ao aborto nos últimos tempos. Teve a ADPF dos anencéfalos, teve o julgamento de um habeas corpus que falava sobre a descriminalização do aborto; e tem um cálculo aí de que pelo menos quatro ministros acabam sendo a favor do aborto, de acordo com sua linha de argumentação, não apenas em casos específicos mas até a décima segunda semana em todos os casos que a mulher não quiser seguir a gravidez. É muito incerto prever, porque depende do momento em que vai ser colocado em pauta. Se for daqui a dois meses, temos esses 4 votos garantidos, tendo que convencer outros ministros. Ele pode ser colocado em votação daqui a dois ou quatro anos.
Segundo o Ministério da Saúde, uma mulher morre a cada dos dias por causa de um aborto inseguro. Queria que você comentasse essa calamidade para as mulheres.
A gente precisa primeiro pensar em quem são as mulheres que fazem aborto no Brasil, e a que riscos elas estão submetidas. A Pesquisa Nacional sobre Aborto levantou dados interessantíssimos. Por exemplo, 60% das mulheres que recorrem ao procedimento já têm filhos. E recorrer ao procedimento pra elas significa garantir o tempo, a vida, o cuidado daqueles filhos que já existem, e elas não conseguirem levar pra frente mais um filho. Sabemos que vivemos numa sociedade que tem uma divisão sexual do trabalho muito imposta, e que todas as tarefas de cuidado ficam sobre os ombros das mulheres. Então quando a mulher decide interromper uma gravidez, ela tá pensando em todos esses aspectos.
Um outro mito que deve ser quebrado, tem a ver com o fato de que muitas das mulheres que recorrem ao aborto são religiosas. A pesquisa mostra que 56% das mulheres são católicas e 25% são protestantes. Se formos somar somente essas duas religiões, já temos cerca de 80% das mulheres que recorrem ao aborto. Isso significa que não há discurso moral que vai impedir as mulheres de fazerem um aborto. Sabemos que as mulheres ricas que querem abortar, basta recorrer a uma clínica que elas têm acesso ao aborto, e as mulheres pobres acabam fazendo em condições inseguras, insalubres, comprometendo a sua própria vida. Quando pensamos no panorama do aborto no Brasil, a gente vê que uma prática como essa não pode ser um crime.
É possível traçar um cenário das exposições no STF até agora?
Sim. Algo importante é que o próprio Ministério da Saúde (por mais que não possa fazer uma defesa do aborto em si, porque está falando ali em quanto órgão do governo que está prestando informações), traz informações que mostram como a realidade do aborto no Brasil é muito dura para as mulheres, e como ela precisa, de fato, mudar. Existem mais de 15 mil internações por complicações de aborto; o próprio dado de que uma mulher morre a cada dois dias. É muito impressionante. E os argumentos que são contra essa prática, na maior parte são feitos por homens e são muito pouco científicos.
Edição: Mauro Ramos