Os pedidos de estrangeiros à procura de proteção no Brasil aumentou de 35.464 em 2016 para 85.746 em 2017, representando um incremento de 118%. Os dados foram apresentados pelo relatório "Tendências Globais - Deslocamentos forçados 2017", elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e divulgado nesta terça-feira (19).
Em razão do Dia Mundial do Refugiado, comemorado neste 20 de junho, a agência da ONU divulga anualmente informações internacionais de deslocamentos forçados. Os números brasileiros acompanham um movimento global: Em todo o mundo, o número de refugiados e deslocados internos chegou a 68,5 milhões em 2017, nível recorde pelo quinto ano consecutivo.
O Brasil tem atualmente 10.264 refugiados reconhecidos e quase 86 mil solicitantes de refúgio, que, somados a estrangeiros que receberam outro tipo de proteção - como a permissão temporária de residência - somam quase 150 mil pessoas.
Com 17.900 solicitações, os venezuelanos ocupam o primeiro lugar na lista de nacionalidades que pediram refúgio em terras brasileiras. Em seguida estão cubanos (2373), haitianos (2362) e angolanos (2036).
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Segundo a Acnur, esse aumento exponencial ao redor do mundo está ocorrendo devido a continuidade de graves conflitos, crises e guerras. A agência cita a guerra na Síria que, até o fim de 2017, obrigou 12,6 milhões de pessoas a se deslocarem forçadamente, e a limpeza étnica da minoria rohingya, em Mianmar, que fez com que mais de 600 mil pessoas se refugiem em Bangladesh.
Conflitos na República Democrática do Congo, no Afeganistão, no Sudão do Sul e na Somália também estão entre as principais causas do aumento do numero de pessoas forçadas a deixar suas casas por conta dos próprios conflitos, violência ou perseguição política.
Processo lento
O Brasil também ocupa o posto de país que mais acumula pedidos de refúgio na América Latina. Criado pela lei nº 9.474/1997, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) é ligado ao Ministério da Justiça e é responsável por reconhecer e tomar decisões sobre a condição de refugiado no Brasil, ou seja, deve analisar as mais de 85 mil solicitações de refúgio em território brasileiro.
Marcelo Haydu, do Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado), critica a demora para análise dos pedidos de refúgio e afirma que no Conare existem apenas 14 pessoas para julgar as mais de 85 mil solicitações.
“A gente tem um problema histórico que é a morosidade do Poder Público, do Conare, de julgar os pedidos de refúgio, e está virando uma bola de neve. Tem pessoas que solicitaram refúgio há três, quatro anos, e o julgamento ainda não foi realizado”.
Natural de Kinshasa, capital do Congo, Jean Katumba protagonizou um desses casos: chegou ao Brasil em 2013, mas só foi reconhecido como refugiado depois de cinco anos. Preso e torturado no Congo por motivos políticos, Katumba é vítima da continuidade de um conflito que já deixou milhões de mortos na chamada Grande Guerra Africana, que durou de 1998 a 2003, quando o governo de transição da República Democrática do Congo tomou o poder.
O período causou uma enorme instabilidade política no país que dura até hoje e se agravou ainda mais após o presidente Joseph Kabila, que ocupa o posto desde 2001, se recusar a sair do poder no fim de seu segundo mandato e intensificar a atuação do exército contra opositores do governo. Outro fator determinante nos conflitos do Congo é a exploração desenfreada por empresas estrangeiras de matérias primas estratégicas como o tântalo e o coltan, utilizados na produção de aparelhos celulares e computadores.
Além das dificuldades inerentes ao próprio processo de refúgio, como as diferenças de língua e cultura, Katumba acredita que um dos seus maiores problemas foi justamente a demora para ser reconhecido como refugiado no Brasil. “A documentação que ajuda para conseguir casa, trabalho, para se inserir em programas para conseguir benefícios sociais”, comenta o congolês.
Mas, mesmo com a documentação, ele avalia que a ajuda oferecida pelo governo brasileiro é pouca perto do que os refugiados realmente precisam. Ajuda no sentido de ajuda mesmo, não tem. Temos uma ajuda inicial. É a ajuda básica mas e depois? O que nós queremos mesmo é nos integrar como cidadãos brasileiros. Para isso, precisamos de consideração, algumas políticas, algumas ajudas direcionadas, para que não seja uma ajuda paliativa”.
Preconceito
A nigeriana Mate Sunday, atualmente com 38 anos, precisou sair de seu país para fugir dos atentados do Boko Haram, grupo fundamentalista islâmico considerado terrorista pela ONU. Ela chegou ao Brasil em 2014, grávida, e passou por algumas casas de acolhida até se encontrar com seu marido, também refugiado, e conseguir reunir a família em São Paulo.
“Foi muito difícil”, diz Mate. “Primeiro, é o problema da língua, segundo é um país que não conheço. Tudo é mudança. Cultura diferente, língua diferente, comida diferente. Eu sofri bastante com essas coisas”.
O preconceito também fez com que a adaptação na vida da nigeriana fosse ainda mais complicada. “Antes, era difícil. Às vezes, quando entrava no ônibus, não queriam sentar perto. Em São Paulo está melhor, o preconceito não acabou ainda mas está melhorando… Mas em outras cidades, meu Deus, não é fácil”, conta Mate. “Até agora eles não vem a gente como iguais a eles, falam como se fossemos escravos. Querem incomodar, mandar a gente fazer tudo. Não tem respeito. Não respeitam a gente”, desabafa.
Com o caçula nascido no Brasil, a nigeriana conseguiu o status de imigrante com permanência definitiva por filho brasileiro. Mate sobreviveu com o apoio de organizações não-governamentais desde que chegou, inclusive para conseguir trazer seus outros três filhos que, para uma maior proteção, estavam com familiares em estados diferentes da Nigéria.
Mate e sua família ainda vivem em condições precárias, e, após fazer um curso profissionalizante, conseguiu um trabalho como auxiliar de cozinha, mas segue dependendo da ajuda de ONGs e de pessoas que se solidarizam com sua história.
Organizações não-governamentais
Apesar de avaliar a política brasileira como positiva por ser aberta à entrada de refugiados, Marcelo Haydu pondera que as ações de integração, de responsabilidade do Conare, acabam sendo realizadas por organizações não governamentais como o próprio Adus. No tocante à moradia e abrigo, as instituições católicas são referência, como a Pastoral do Migrante, o abrigo Arsenal da Esperança e a Associação Palotinas.
“Tanto os refugiados quanto os solicitantes de refúgio continuam dependendo majoritariamente do apoio da sociedade civil organizada, das organizações não governamentais ligadas ou não a uma instituição religiosa. O que é feito pelo governo em comparação com o que é feito pelas ONGs é muito pouco”, afirma o diretor do Adus, instituição que trabalha com a capacitação profissional dos refugiados para a formação de renda e qualificação no mercado de trabalho.
Ele ainda critica a falta de verbas destinadas às entidades que realizam esses trabalhos. “O mais grave é que além do governo não tomar para si uma responsabilidade que é dele, por lei, de possibilitar espaços de integração local de uma forma mais ampla, ele não apoia, quase nunca, as iniciativas da sociedade civil. Isso faz com que as organizações tenham que buscar apoio dentro da própria igreja, com pessoas físicas ou com a iniciativa privada para tocar com seus trabalhos, e, em alguma medida, pelo Acnur. O governo faz muito pouco, inclusive, em relação à transferir recursos para que essas organizações trabalhem".
“Brasil abre portas, mas fecha janelas”
Jean Katumba concorda com a avaliação de que as políticas de integração são insuficientes. Um ponto que o congolês considera muito prejudicial aos refugiados é a dificuldade para revalidação do diploma e complementa que, para refugiados solicitantes, que ainda não são reconhecidos, a situação é ainda mais difícil.
“O Brasil abre a porta mas fecha a janela. A ajuda tem que ser continuada, uma ajuda que ajude mesmo. Se fala sobre o acolhimento, mas cadê o acompanhamento do acolhimento? Eu vou dormir aonde? Todo abrigo depois de seis meses, tem que sair. Como eu vou conseguir casa?", questiona Jean, relembrando seus momentos como refugiado recém-chegado.
O congolês, que atualmente está estudando Direito Internacional, defende uma integração permanente para os refugiados, até que se estabeleçam. “O refugiado merece um acompanhamento específico, precisa considerar o refúgio como um acidente porque ninguém gosta de ser refugiado. Ninguém gosta disso. A integração não é somente dar roupa, não é somente dar abrigo, a integração tem que ser continuada".
Protagonismo
Desde 2014, Jean organiza a Copa dos Refugiados, que conta com mais de 19 times de diferentes países. A edição de 2018 está na fase classificatória e, segundo o congolês, promove e incentiva a integração entre os refugiados e dos refugiados com os brasileiros.
“A Copa dos Refugiados está pautando a visibilidade dos refugiados e quer mostrar para todo mundo que queremos ser protagonistas dessa integração. Não queremos mais que as pessoas falem de nós. Nós queremos falar sobre nós mesmos porque nós que sentimos a dor. Quem sente dor é quem tem que falar”, ressalta Katumba.
No relatório "Tendências Globais - Deslocamentos forçados 2017", pela primeira vez, o Acnur registrou também o número de crianças desacompanhadas ou separadas consideradas refugiadas.
Ao longo do ano passado, 45.500 menores de idade desacompanhados foram registrados como solicitantes de asilo, com pelo menos um caso em 67 países. A maioria dos pedidos era de menores entre 15 e 17 anos, mais de 33 mil. Mais de 12 mil crianças são da faixa etária de 14 anos ou menos.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira