A Argentina amanheceu tomada por uma maré de lenços verdes na manhã desta quinta-feira (14). Centenas de milhares de mulheres celebravam o anúncio da aprovação do projeto de lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol) no Congresso Nacional argentino. Os pañuelos (lenços), que se tornaram o símbolo da luta pela legalização do aborto, já ocupavam a praça do Congresso em Buenos Aires ao longo da quarta-feira (13), à espera da votação final na Câmara dos Deputados.
Ao todo, foram 23 horas de debate em plenário. O cenário na Câmara mudava a cada minuto, e pairava o receio sobre qual seria a reação que se desencadearia do lado de fora caso o projeto não fosse aprovado. Deputados do mesmo partido divergiam em suas opiniões e, até o último momento, o número de indecisos fazia toda a diferença. Os 256 deputados presentes expuseram suas posições, enquanto milhares de pessoas armavam acampamentos e acendiam fogueiras do lado de fora, em uma vigília que atravessou uma noite de 3°C. Até que enfim, às 10h da manhã, foi anunciado que o “sim” venceu por 129 votos a 125.
Manuela Castañeira, dirigente da Agrupación de Mujeres Las Rojas e uma das principais promotoras da luta pelo direito ao aborto, fez um discurso emocionado à sua organização, referindo-se às mulheres como “as valentes” que tornaram esta vitória possível. “Que seja lei, mas sobretudo que seja luta!”, disse, sob aplausos.
O projeto de lei aprovado, de autoria da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que inclui mais de 300 organizações e personalidades vinculadas ao movimento de mulheres, foi o sétimo apresentado no Congresso desde 2007. Com a aprovação na Câmara, o PL será encaminhado para votação decisiva no Senado, ainda sem data marcada.
Pressão religiosa
A grande volatilidade durante o processo de decisão e a mudança de votos é resultado de pressões externas e de discordâncias dentro dos próprios partidos. A deputada Romina del Plá, do partido Frente para Izquierda, destaca a influência religiosa no embate no Congresso. “A enorme pressão da igreja católica sobre os governantes demonstra que não há liberdade para decidir sobre o tema com foco na saúde pública. Há uma pressão para manter critérios completamente arcaicos na legislação”, diz a deputada, que votou a favor do projeto de lei.
Cerca de 40% dos votos positivos no Congresso vieram do bloco composto pela Frente para la Victoria, partido pelo qual se elegeu a ex-presidente Cristina Kirchner, e pelo Partido Justicialista. Outras expressões também peronistas contribuíram com 17% dos votos. Bastante dividido, o bloco neoliberal Cambiemos, do presidente Mauricio Macri, ainda trouxe 31% dos votos favoráveis.
Dentro e fora do Congresso, o slogan das forças conservadoras dizia “Salvemos as duas vidas”, enquanto os favoráveis insistiam que não se tratava de uma discussão sobre “aborto sim ou aborto não”, e sim sobre “aborto clandestino ou aborto legal”. Segundo o relatório “Contribuições da Anistia Internacional ao Debate sobre a Despenalização do Aborto”, de 2018, complicações derivadas de abortos praticados em condições de risco são a primeira causa da mortalidade materna na Argentina há 30 anos. Desde 1983, pelo menos 3.030 mulheres morreram no país por abortos inseguros.
Fratura
O debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez provocou um racha em quase todos os partidos, campos e blocos argentinos e transcendeu a chamada “fratura” (grieta, em espanhol) que, desde o início dos anos 2000, divide a população argentina em kirchneristas e anti-kirchneristas.
O Proposta Republicana (PRO), por exemplo, terminou com 37 deputados votando contra o projeto de lei e 17 a favor. O deputado Daniel Lipovetzky, membro do PRO, presidiu as 15 audiências públicas semanais no Congresso nos últimos dois meses, conhecidos pelas feministas como “terças e quintas verdes”. "Por um lado foi muito saudável, porque foi um desafio enorme de construções políticas, mas por outro foi dificil, pois discutimos entre nossos próprios pares e bancadas”, comenta Lipovetzky, que votou a favor do projeto de lei. “Acredito que a Argentina será um exemplo de avanço legislativo para outros países da América Latina, assim como aconteceu com a lei do casamento igualitário”.
Para a diretora executiva da Anistia Internacional Argentina, Mariela Belski, o debate produziu uma “fratura na fratura”. “Deputados e deputadas do próprio Cambiemos lideraram este debate de maneira impecável, ao mesmo tempo muitos outros são contra. É uma fratura que vai permanecer e temos que ver como isso funcionará no futuro”, analisa Belski.
Vitória das mulheres
Julieta Sou, ativista de direitos humanos, acredita que os rachas são resultado da influência do movimento de mulheres no panorama político argentino na última década. Gestado nos Encontros Nacionais de Mulheres, que acontecem anualmente desde 1986, o movimento atualmente mobiliza milhões de pessoas em atos como as marchas Ni Una Menos e #8M, esta última realizada no Dia Internacional das Mulheres, e vem influenciando diversos países da região como Brasil, Uruguai, Chile e México.
Ao longo dos últimos anos, o movimento interpelou movimentos sociais, partidos e centrais sindicais com a bandeira do feminismo e promoveu a criação de secretarias e comissões de gênero, repensando as formas de se fazer política no país. O crescimento, protagonismo e capacidade de pressão política dos movimentos feministas são apontados como um dos motivos que levaram o presidente Macri a dar carta branca para que o Projeto de Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez fosse discutido no Congresso Nacional este ano.
“Demos um passo gigantesco. E é um assunto que envolveu muito os jovens, talvez isso seja o que mais chama a atenção em todo esse processo", afirma Mariela Belski, referindo-se a ações como as ocupações de escolas realizadas por adolescentes de Buenos Aires.
A força do movimento ficou evidente na disposição dos manifestantes na praça neste 13 de junho, quando o lado que a polícia destinou àqueles e àquelas favoráveis à aprovação da lei foi tomado por dezenas de milhares de pessoas, enquanto o outro reuniu algumas centenas.
Nos meses prévios à votação, a chamada “maré verde” gerada pelo movimento de mulheres tomou conta dos espaços públicos e privados, conversas e debates em âmbitos familiares, profissionais e nas ruas. Uma pesquisa realizada pela Anistia Internacional em Buenos Aires mostra que 97% da sociedade está envolvida e informada sobre o debate da legalização do aborto.
Marta Dillon, jornalista e uma das fundadoras do movimento Ni Una Menos, ressalta que a aprovação do aborto legal na Câmara é um divisor de águas na história do país e na luta feminista: “Nossas histórias estão sendo contadas em voz alta. Há um estímulo, uma imensa energia e uma contribuição de novos corpos à nossa luta, que tem o aborto como ponto fundamental, mas é claro que não termina aí”.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira