CRISE

Após Macri propor que Argentina "volte ao mundo", país está entre o FMI e o abismo

Antônio Ferreira, do Coletivo Passarinho, analisa as tragédias econômicas do governo Macri, que deve pedir ajuda ao FMI

Colaboração com o Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |
Choque "modernizador" de Macri tentou agradar as elites e classes médias e cobrou um alto preço da população mais pobre
Choque "modernizador" de Macri tentou agradar as elites e classes médias e cobrou um alto preço da população mais pobre - Casa Rosada

O eixo discursivo central da campanha eleitoral de Mauricio Macri para a presidência foi “voltar ao mundo”. Era hora de superar o atraso e o isolamento da era Kirchner, aproveitar o grande potencial humano e produtivo da Argentina e produzir reformas capazes de reinserir o país na economia mundial. Nas falas televisivas dos apoiadores do então candidato dizia-se com frequência que a Argentina precisava voltar a ser um país normal. E um país normal, para a elite argentina, bem como para parte significativa de sua classe média, é um país em que se pode comprar e vender dólares sem restrições.

Vencidas as eleições, o novo mandatário tratou de colocar em prática seu choque “modernizador”: abriu o país às importações, liberou o controle cambiário sobre o valor do dólar, derrogou tributos sobre a exportação do trigo, milho e soja e reduziu impostos sobre automóveis, motos e embarcações de luxo, quase sempre importados. Aproveitou a boa recepção à sua vitória nas economias do centro do capitalismo, que viram aí uma oportunidade de iniciar a virada no tabuleiro, com auspícios de uma derrocada em série dos governos populares da região, para alçar voos maiores. Em dezembro do ano passado, Buenos Aires sediou a 11ª Reunião Ministerial da Organização Mundial de Comércio (OMC). No final deste ano, presidirá a Cúpula do G20, a reunião das vinte economias mais ricas do planeta, que terá o tema “construindo consenso para um desenvolvimento equitativo e sustentável”.

Por debaixo desse véu modernizador, o mundo volta à Argentina sob outra forma, arcaica. No dia 8 de maio, diante da desvalorização galopante do peso argentino, da ineficácia da alta dos juros e da venda sucessiva de reservas para conter a subida do dólar, em pronunciamento oficial, o presidente declarou que decidiu iniciar diálogo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para “fortalecer este programa de crescimento e desenvolvimento”. A euforia dá lugar ao pesadelo, como no filme de terror Escape From Tomorow [Fugindo do Amanhã, em português], em que um pai leva a família de viagem para a Disney sem revelar que foi demitido.

O outro lado do conto de fadas é um país empobrecido (ao menos para suas vastas maiorias) e que, desde que Macri assumiu, somente agudizou seus problemas estruturais. O setor exportador de soja e minérios aumentou consideravelmente a sua rentabilidade. O setor financeiro obteve ganhos fabulosos com o empréstimo de dinheiro ao Estado a juros exorbitantes. A bicicleta financeira consistente na compra e venda sucessiva das Letras do Banco Central (Lebac) já no ano passado atingia 26% de juros. Para o setor produtivo industrial quase nada chegou neste contexto de plena abertura aos investidores. Já para a massa trabalhadora restou o aumento do desemprego, a desindustrialização, a redução do valor real dos salários e o aumento brutal das tarifas de serviços públicos.

Em termos macroeconômicos os desequilíbrios somente se acentuaram: a abertura econômica gerou mais dependência. O governo impulsionou o forte processo de endividamento externo dando um passo atrás no caminho de redução da dívida ocorrido durante o período kirchnerista. O déficit de conta corrente alcançou 5% do PIB, superando os 2,8% de 2015 e os registros da década de 1990. A avalanche importadora, em um cenário de abertura comercial, provocou a elevação do déficit de comércio exterior para o nível mais elevado dos últimos 40 anos. Ao contrário dos tão sonhados investimentos produtivos, incrementou-se a fuga de capitais, e ainda se tentou amenizar o déficit pelo aumento da dívida externa.

O macrismo e seu leque de aliados chamaram as reformas implementadas até agora de “gradualistas”. Avançaram com a reforma previdenciária, com uma reforma tributária com caráter regressivo e têm na agenda uma reforma trabalhista de propósito flexibilizador e precarizador. O remédio do ajuste, no entanto, nunca é suficiente. A morte iminente do paciente, em vez de colocar em questão o próprio tratamento, para os financistas de plantão é sempre uma oportunidade para legitimar um aumento da dose. Por isso, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central do Brasil sob a presidência de FHC, ao falar da crise argentina ao diário Ámbito Financiero, diz que “hoje as opções são fazer mais rápido este ajuste, que sempre esteve entre os objetivos do governo, ou ter problemas muito mais sérios”. O retorno ao FMI serve, portanto, para pôr fim ao “gradualismo” e substituí-lo pelo choque descarado, legitimando um incremento da austeridade.

FMI ajuda quem?

Por outro lado, a consciência do significado do pedido de resgate na Argentina não é pequena. O FMI apoiou o programa econômico ortodoxo e regressivo da última ditadura militar. Foi protagonista direto dos planos massivos de privatização e desregulação da era Menem, na década de 1990, apoiando o programa de convertibilidade que estabeleceu a paridade entre o dólar e o peso. Programa este que culminou com a crise econômica e social sem precedentes de dezembro de 2001. No início de 2002, 25% dos argentinos estavam desempregados e o índice de pobreza chegava a quase 60%.

Agora, o FMI vem ao resgate de um governo neoliberal cujos altos postos são formados, sobretudo, por CEOs: ex-diretores executivos de grandes empresas, muitos deles oriundos do setor financeiro e bancário. A chamada “porta giratória” entre setor privado e setor público é, na atual gestão, mais vigente do que nunca. Os dirigentes, formados em sua maioria em universidades norte-americanas ou em universidades particulares de elite na Argentina, tem pouca conexão com seu próprio país. Mais do que isso: tem pouco do seu patrimônio pessoal nessas terras. O ministro da Fazenda, Nicolas Dujovne, possui 88,25% dos seus bens declarados no exterior. O presidente do Banco Central, Federico Sturzenegger, 70,04%, segundo dados divulgados pelo La Nación. São eles, junto com o presidente Maurício Macri, envolvido no escândalo das offshores descobertas no caso Panamá Papers, que querem convencer a população de que um novo empréstimo com o fundo dará proteção ao país.

No entanto, um recente informe do Centro de Estudios de Opinión Pública (CEOP) aponta que 77% dos argentinos são contra o pedido de empréstimo ao FMI. Ao contrário do que gostariam alguns ideólogos do mercado e do governo, a população não esquece que o desastre de 2001 veio depois de anos de ingerência direta e de aplicação das políticas do FMI. Não por acaso, os colunistas econômicos do establishment não deixam de apontar para os riscos de uma nova explosão “populista”. E para mostrar que Macri não está sozinho neste processo de aprofundamento da inserção subordinada da Argentina na economia-mundo, Donaldo Trump (EUA), Angela Merkel (Alemanha) y Mariano Rajoy (Espanha) não tardaram em deixar claro o apoio às medidas do governo.

O próprio ministro da Fazenda argentino já admitiu que o país terá mais inflação e menos crescimento, em declaração ao La Nación. A última terça-feira (15) foi considerada o dia D, pois venciam 30 bilhões de dólares em Letras do Banco Central (Lebacs). O perigo imediato de forte desvalorização cambiária decorrente da não renovação das Lebacs e consequente corrida ao dólar pode ser controlado. O Banco Central Argentino, além de ofertar 5 bilhões de dólares pelo segundo dia consecutivo, emitiu dívida com a oferta de novos títulos do tesouro. Ainda que o governo tenha conseguido controlar o cenário, o problema de fundo permanece. “As Lebacs são uma bola de neve que se chuta para frente”, disse o Izquierda Diario. Cedo ou tarde, o caminho do endividamento, fracassa.

Grande acordo nacional

Após reunião ministerial na segunda-feira (16), o chefe de gabinete, Marcos Peña, esclareceu a nova linha política: chegar a um grande acordo nacional com o objetivo de reduzir o déficit fiscal, sendo que o marco para tal acordo é o orçamento de 2019. Disse, em declaração ao La Nación, ainda, que o caminho é o correto, mas é preciso acelerá-lo.

O caminho já é conhecido e os resultados também: ajuste sobre o povo, aumento das desigualdades, desmonte do Estado e mais recessão. Economiza-se para diminuir o déficit e “honrar” os compromissos com o setor financeiro. A ação indutora do Estado como impulsor da atividade econômica vai às favas. A economia encolhe e a arrecadação tributária diminui. Resultado final: todo ajuste é insuficiente, demandando ainda mais ajuste. E o país navega na catástrofe social, que é narrada pelos cínicos de plantão como um mal necessário.

Resta saber por quanto tempo a narrativa vendida pela imprensa que apoia o governo vai sustentar o discurso que é desmentido no cotidiano da população argentina. Nesta quarta, pelo menos duas mobilizações contra o FMI estão convocadas, uma no Obelisco e, outra, no Ministério de Economia, ambos em Buenos Aires. Nesta semana, várias organizações convocam uma manifestação na Praça de Maio, também na capital argentina. A pressão ao governo Macri aumenta e vem de todos os lados.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira