Gabriel Fernandes é doutorando na Universidade Federal do Rio de Janeiro e estuda as sementes crioulas e do GT de Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia. Durante o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que a aconteceu de 31 de maio a 03 de junho, em Belo Horizonte (MG), ele concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco.
Brasil de Fato - Como as sementes crioulas compõem o processo de resistências dos agricultores e agricultoras?
Gabriel Fernandes - As sementes são um produto do próprio modo de vida dos pequenos agricultores, das comunidades indígenas, das comunidades tradicionais. Se observamos uma cultura agrícola, tipo o milho ou o feijão, encontramos centenas de tipos desses grãos e essa diversidade toda existe principalmente pelo trabalho que os agricultores fazem com essas variedades. Ao longo das gerações, esses agricultores são criadores da diversidade e são materiais que eles vão selecionando por tipo de região em que eles estão, o tipo de solo, o tipo de clima, o tipo de manejo que eles tem e é uma seleção exatamente adaptada às condições deles. Por isso que é uma forma de autonomia. Se a gente pegar o outro posto, que são as sementes melhoradas, híbridas, transgênicos, a lógica é outra. A lógica sempre foi de trabalhar as plantas para aumentar a produtividade. Aumentar ao máximo a produção da planta, mas com um custo muito elevado. O custo econômico primeiro, porque tem que comprar muito adubo, corrigir a terra com calcário, quando você bota muito adubo na terra, acaba atraindo mais pragas e doenças e daí leva mais agrotóxico, então tem esse custo econômico e o custo ambiental de usar esse tipo de produto. Isso gera muita dependência porque tem que comprar sementes, todo o pacote de tecnologia de insumos que vem junto, e acaba gerando uma dependência de conhecimento, porque o agricultor não tem mais a semente que ele planta, seleciona, cuida, guarda, o sistema dele agora é uma semente que vem de fora, com outro tipo de cultivo e tecnologia. Então à medida que os agricultores começam a trabalhar mais esse material do que os outros, vai tendo um processo de erosão do conhecimento. Por isso que a gente fala que quando tem um encontro de agricultores e eles trocam sementes ou tem uma feira, quando vamos no semiárido, tem os bancos e casas de sementes, esse é um processo de recuperar as plantas, as sementes, as mudas, mas antes de tudo um processo de recuperar o conhecimento e cuidar desse material todo também.
Brasil de Fato - Essas últimas semanas vimos novamente na pauta política a aprovação do chamado “Pacote do Veneno”. Qual a relação entre isso e as sementes crioulas?
Gabriel - Sabemos que a bancada do agronegócio e ruralista no Congresso Nacional é muito forte, é mais da metade dos deputados e senadores que estão ali e eles tem a base do governo hoje em dia, com isso tem condições de aprovar ou fazer avançar políticas que interessam a esse setor. Esse projeto que é um "liberou geral" dos agrotóxicos é um risco enorme para a sociedade. O principal argumento dos deputados é que a lei brasileira tem mais de 30 anos e precisa ser atualizada. O que eles não dizem é que essa lei tem mais de 30 anos e é uma referência de uma boa legislação do agrotóxicos para outros países. Inclusive o termo agrotóxico é uma criação brasileira. E uma das coisas que essa lei está querendo fazer é riscar a palavra agrotóxico do dicionário e da legislação e colocar "produto fitossanitário", que já é uma forma de manipular a própria população de forma geral. Você está tratando de produtos que causam problemas ambientais. O Instituto Nacional do Câncer tem pelo menos dois anos que já publicou uma nota fazendo uma associação direta dos agrotóxicos, seja com consumidores e agricultores e agricultoras, com a incidência de câncer. A gente pode dizer hoje com segurança e base científica que a exposição aos agrotóxicos pode levar senão hoje, mas daqui a algum tempo, a vários tipos de câncer e o que o Congresso quer fazer é facilitar a produção, a venda, a exportação, importação e a comercialização desses produtos. Isso tem a ver com o modelo agrícola predominante no brasil, que é um modelo de monoculturas, de grande áreas, que só funciona em base de muito adubo, muita máquina e principalmente muito agrotóxico. A aprovação desse processo seria um enorme retrocesso para o Brasil, porque a proposta da lei é colocar no Ministério da Agricultura toda a responsabilidade para tomar decisões sobre os agrotóxicos. Hoje em dia tem que passar pelo IBAMA, que faz uma avaliação ambiental, e pela ANVISA, que faz a avaliação de saúde. O olhar do ministério da agricultura é o olhar do agronegócio, então ele vai olhar só para produção, só pensando no lado das empresas que produzem agrotóxico e que importam, vendem, e se isso passar vai ser um problema muito grande para gente. Por isso, é importante estar informado e mobilizado pra tentar barrar essa ameaça que está vindo do congresso.
Brasil de Fato - Sobre as sementes e geração de conhecimento e autonomia, uma coisa que é perceptível é que os agricultores e as comunidades tem muita dificuldade de ver esse saber reconhecido como saber científico. Mesmo em ocasiões onde o governo pode comprar sementes para distribuir para outros agricultores, as sementes não são priorizadas. Como você enxerga isso?
Gabriel - A gente está falando de 40 anos da "revolução verde", dessa modernização conservadora da agricultura no Brasil. E não foi só uma mudança do ponto de vista tecnológico, mas ideológico. Essa revolução vem carregada desse discurso de progresso, de modernidade e isso é feito em cima da desvalorização exatamente daquilo que a gente quer recuperar hoje e sabe que funciona, que pode ser melhorado e que tem uma base muito mais sustentável. Nessa lógica que é de desvalorizar aquilo que é do lugar, que é dos agricultores e que é tradicional, teve todo um processo intencional do agronegócio e dessa revolução de desacreditar das sementes crioulas. Então acontece de chegarmos em uma comunidade, conversar com um agricultor ou agricultora, perguntar das sementes que tem, as sementes próprias e eles dizem que não tem nada, mas você vai conversando e achando muita coisa ali. Então isso, eu entendo que é fruto desse processo de diminuir o valor dessas sementes e a gente do campo da agroecologia, nosso papel é fazer um contraponto a essa lógica do agronegócio e valorizar essas sementes dos agricultores e mostrar o valor que elas têm. Uma das formas de fazer isso, além das feiras, trocas de semente e resgates desses materiais, é fazer a pesquisa e trabalhar junto com os agricultores. A mesma pesquisa que faz transgênicos, que fez os híbridos, que falou que semente crioula é pouco produtiva, que não interessa, a gente também tem que trabalhar e existem experiências nesse sentido, não no sentido de desenvolver variedades que são superprodutivas, mas variedades que estão dentro daquilo que interessa para o agricultor. É o milho que tem mais palha, que dá pra conservar mais o paiol, que tem mais matéria espalhada para os animais, um feijão com ciclo mais curto, plantas mais resistentes, que é um pouco do olhar do agricultor. O agricultor, quando seleciona a semente, ele não pensa apenas naquela que é mais produtiva, tem que atender uma série de critérios. Esse olhar muitas vezes é até mais complexo do que a pesquisa oficial. Então, uma coisa que a gente procurar trabalhar é isso, fazer uma pesquisa contextualizada, com os pesquisadores em campo, sabendo quais problemas os agricultores tem, onde eles estão precisando trabalhar, numa outra construção de conhecimento e daí gerar pesquisa ou trabalho com as plantas num contexto próprio dos agricultores.
Brasil de Fato - Você tem percebido diferentes formas de armazenamento e cuidados das sementes de acordo com a região do Brasil? Como isso muda?
Gabriel - Tem várias formas tradicionais. No Rio Grande do Sul, os agricultores e guardiões de sementes tem construído silos de cimento e concreto para armazenar sementes. Na zona da mata mineira, onde eu vivo agora, os agricultores tem a lógica de guardar no paiol. E dentro dos paióis tem várias formas de trabalhar sementes. Uma agricultora me falou que passa uma mistura de água e sal nas sementes e depois encaixa uma na outra pra ficar bem vedada e consegue conservar bastante. No semiárido, os agricultores debulham o milho, secam o feijão e guardam em garrafas PET e colocam pimenta do reino, casca de laranja seca, cinzas, pó de rocha... São várias técnicas que procuram valorizar os recursos que os agricultores encontram na região pra ter semente pra plantar no ano seguinte, já que além da variedade, a gente tem que ter semente boa, com boa germinação pra garantir que ela vá poder ser multiplicada, gerar sementes de qualidade e uma outra coisa interessante é que nesse processo de troca esses agricultores vão aumentando as formas que eles tem de preservar as sementes com qualidade de um ano para o outro.
Brasil de Fato - Alguns agricultores também falam que a semente é memória. Como você tem observado isso?
Gabriel - Tem uma coisa muito bonita que vemos sempre nas feiras, que são os agricultores e agricultoras encontrando uma semente que era dos pais ou avós e que por algum motivo tinham perdido. Aquilo não é só recuperar uma semente, mas a história de uma família do lugar. Então vemos que há um valor simbólico, cultural e afetivo bastante grande. Então as feiras tem esse papel. sempre que você vai numa feira e conversa com um agricultor, ele encontrou alguma coisa que eu algum momento ele havia perdido, por algum motivo. Então ele consegue recuperar parte da história dele, uma semente ou planta que havia perdido.
Edição: Catarina de Angola