Buenos Aires voltou a ter uma presença massiva de pessoas nas ruas nesta segunda-feira (4). Junto à luta contra as violências machistas, somaram-se as denúncias dos ajustes econômicos e do empobrecimento, que são a base das políticas de governo da coligação direitista Cambiemos, do presidente argentino Maurício Macri. Também foi forte o pedido pela Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol). Crônica de uma tarde onde a chuva não tornou opaca as cores nem as alegrias.
Como se a multidão já não fosse mais uma surpresa, caminhamos, outra vez, entre centenas de milhares. Parecia que as marchas se converteram, por horas, nos lugares mais seguros e reconfortantes para estes dias de hostilidades, violências e miséria. E para continuar com essa construção de caminho sólido, uma nova manifestação Ni Una Menos (Nenhuma a Menos, em português) irrompeu no cotidiano portenho.
Não houve chuva, frio, mudança de dia nem silêncio midiático que pudesse frear a vontade de compartilhar esse momento de comunidade feminista, esses instantes de reafirmação de que a história assim se faz, e que a revolução não pode estar tão longe.
Outra vez, as garotas, piqueteiras, trabalhadoras, migrantes, travestis e “aborteras” se encontraram em um mesmo “Já chega!”; o Ni Una Menos que, há três anos, sintetiza as denúncias e raivas que as mulheres e dissidências souberam sinalizar durante anos e anos de organização coletiva.
Um Ni Una Menos que, convertido em símbolo, é consigna de todas as lutas. Como também é linguagem cotidiana que ressoa nas barricadas e se cantava nos trens que chegavam desde a periferia de Buenos Aires e nos metrôs que cortavam a cidade. Um Ni Una Menos que, igual ao lenço verde (símbolo da luta pelo aborto legal, gratuito e seguro no país), se apropriou dos sensos comuns ultrapassando as fronteiras inventadas.
E com essa potência, a reivindicação ressoou entre aqueles que ali se encontravam. Ao dizer Ni Una Menos se condensou a exigência pela aprovação do projeto de lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, o repúdio às violências machistas e à cultura do estupro. Assim como de repúdio às políticas de precarização e de ajuste da vida, próprias do governo de Mauricio Macri, em conjunto com os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os tratados de livre comércio. Juntas, essas pautas significam: “Ajuste, demissões, pobreza e precarização para o conjunto da classe trabalhadoras e, sobretudo, para as mulheres, trans, lésbicas, bissexuais, não binárias, travestis, indígenas, negras, migrantes, faveladas e portadoras de HIV”, como foi denunciado no documento definido por consenso nas assembleias feministas realizadas previamente.
Nesse sentido, o coletivo organizado expressou que as decisões político-econômicas do governo de Mauricio Macri implicam cada vez mais cortes do já escasso orçamento para a saúde e a educação, áreas com o trabalho historicamente feminino.
Nesta mesma linha, as feministas denunciaram também a aplicação da reforma da previdência e outras formas de privatização das políticas públicas e as consequentes desigualdades de oportunidades que isso leva.
“A dívida é com nós, mulheres, e, por isso, estamos aqui contra o ajuste neoliberal implementados por Macri e pelos governos estaduais. O ajuste nos corta, nos precariza, nos debilita. Mas estamos juntas e nos somamos às lutas dos/as trabalhadores/as”, denunciaram os coletivos organizados, citando as inúmeras áreas de serviços públicos que serão atingidos pelos cortes, como do metrô, dos docentes, de hospitais, trabalhadores da imprensa, entre outros.
Ao redor do país e do mundo
De distintas partes do país chegam fotos e mensagens: em diversas cidades os lenços verdes, os cartazes e as mulheres nas ruas inundam tudo.
Enquanto isso, uma notícia chegava até nós vinda de Tucumán (província ao Norte do país). Esse Ni Una Menos que denunciava o sistema de morte, tanto pelos ajustes como pelas violências machistas, teve que levantar uma nova reivindicação: María Zelaya, da Frente de Trabalhadores do Interior de Tucumán, havia sido atropelada e assassinada por um taxista.
Junto com outras companheiras, María estava realizando um bloqueio de rua na esquina da Praça Independência: lutavam contra as políticas de ajuste econômico e a miséria, e pela falta de comida nos pratos, que sempre afetam em maior medida as mulheres. María estava com sua filha. O taxista decidiu que nenhuma reivindicação era mais legítima que seu direito de circular e desembestou como se do outro lado não estivessem pessoas, mas obstáculos para ultrapassar. A crueldade representada em um gesto e uma ação, realizadas por um homem.
Mas também chegaram vozes de outras partes da América Latina. Do Chile, onde as e os estudantes pedem o fim da educação sexista, para um futuro com menos estereótipos e violências em relação às numerosas denúncias de violência de gênero e à falta de protocolos que protejam os direitos da mulher em universidades e escolas.
No Peru, o grito forte e com nojo chegou depois do feminicídio de Eyvi Ágreda, a jovem que foi vítima de seu ex-companheiro, que a perseguia e assediava, e que lhe ateou fogo em um ônibus. Apesar da repressão policial, apesar de que no país a cúpula política tenta anular a palavra “gênero” da base curricular das escolas por “se tratar de ideologia”, as mulheres estiveram presentes aos milhares e avisaram que já não se podia voltar atrás.
No México, onde a violência paramilitar ataca as mulheres, ocorreram três assassinatos de candidatas a vereadora e deputada recentemente. Pamela Terán, no estado de Oaxaca, e Juany Maldonado y Erika Cázares, no estado de Puebla, foram assassinadas a tiros por grupos armados que irromperam com absoluta impunidade, em um claro exemplo de como o corpo das mulheres é atacado, inclusive as mulheres que estão na política.
Do México também chegou o “Vivas nos queremos”, que por estes dias aprofunda a movimentação contra o assédio de rua, pensando nas mais jovens.
Na Argentina, um grupo de estudantes da Escola Nacional Superior Antonio Mentruyt (ENAM), formados por companheiras e companheiros de Anahí Benítez, levavam sua imagem como bandeira, sua lembrança como canção, e um pedido de justiça que ultrapassava a chuva da tarde e noite desta segunda-feira (4). Anahí foi vítima de feminicídio em agosto de 2017, na região de Buenos Aires, depois de seis dias desaparecida.
O futuro é nosso
E as juventudes seguem formando coletivos e enchendo as ruas de cores e música: as vemos se prepararem para cada marcha, pintando seus rostos, enchendo-se de brilhos e cores, levantando bandeiras e cartazes com ideias que as identifiquem (“Me quer virgem/me quer santa/me quer sua/me deixa de saco cheio”, portava uma garota com seu inseparável lenço verde no pescoço) e, sobretudo, com a certeza de que o caminho que estão percorrendo já não dá volta atrás.
O pedido do “Aborto legal, seguro e gratuito” tingiu de verde a Praça dos dois Congressos, em Buenos Aires, e suas redondezas. A impactante foto que mostra a centenas de milhares de mulheres com seus lenços hasteados demonstra o crescimento de uma luta histórica para os movimentos de mulheres e, hoje, tão perto de se converter em lei.
Com mais presenças que em outros anos, as jovens, as adolescentes, veem como possível que a lei de Interrupção Voluntária da Gravidez seja sancionada e, com ela, que não haja retorno no avanço pela liberdade de decisão e pela soberania do corpo das mulheres.
Nesse sentido, o próximo dia 13 de junho é o dia em que se espera a aprovação na Câmara dos Deputados do projeto apresentado pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Nestas últimas três semanas em que ocorreram as audiências na Casa, já foram apresentadas 70 mil assinaturas de artistas, profissionais, estudantes, trabalhadoras e trabalhadores de diversos setores em apoio ao projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez.
Então, este mundo que se move pelos pés das mulheres não se detém. E este Ni Una Menos seguirá com seu eco cada dia, porque Ni Una Menos não é somente a luta contra as violências machistas ou as políticas de ajustes e sua consequente feminilização da pobreza; é, sobretudo, para pensar em um futuro de liberdades e possibilidades, de andar tranquilas pelas ruas, como nos sentimos ontem e em cada convocatória, de ter corpos e territórios livres e com direitos plenos.
Edição: Marcha Noticias | Tradução: Vivian Neves Fernandes