Benedita Ricardo de Oliveira nasceu em São José do Mato Dentro, povoado de Ouro Fino, em Minas Gerais, em 1944. Mal conheceu seu pai, que agredia sua mãe. Dela, lembrava-se que era severa. As lembranças doces ficaram por conta da avó. “Lembro-me muito de minha avó, Eugênia, na beira do fogão, preparando os quitutes que fazia sob encomenda para as festas das pessoas abastadas da cidade”, ela afirma na introdução de seu livro, “Culinária da Benê” (2006).
Tive a oportunidade de entrevistar a chef Benê Ricardo em novembro de 2017. Nas paredes de seu apartamento, estava estampado o orgulho que sentia da sua profissão: diplomas de cursos de gastronomia, prêmios e menções honrosas. A humildade com que ela contava como obteve cada um deles, entretanto, era comovente. Ela se tornou órfã aos 14 anos de idade, sem ninguém no mundo. Foi então “adotada” por uma família da cidade, e acabou tendo o mesmo destino de milhares de outras garotas sem família: ainda criança, se viu responsável por todo o trabalho doméstico em troca de comida e moradia. E só.
O ano era 1959, e ela era obrigada a tomar banho frio, dormir nos fundos da casa, sem cobertor, junto com os cachorros. Três anos se passaram até que uma vizinha ficasse com pena do estado da menina e a indicasse para trabalhar com uma família de origem alemã, com quem ela viveu pelos 18 anos seguintes.
Ela venceu o concurso de receitas da Revista Cláudia em 1978, quando ainda era empregada doméstica. Em seguida, foi convidada para trabalhar na cozinha experimental da revista, e de lá para vários outros trabalhos, da cozinha industrial para as casas de família. Sua sorte mudou quando serviu um jantar alemão para convidados ilustres, entre os quais estavam o então presidente militar Ernesto Geisel e o presidente da Federação do Comércio, José Papa Jr., que se surpreenderam com a qualidade da refeição e pediram para conhecer a cozinheira.
E assim, Benê conseguiu uma bolsa de estudos para fazer o curso de 1º Cozinheiro em 1981, aos 38 anos, no Senac de Águas de São Pedro. A primeira mulher a se formar. A única mulher da turma. Ela não tinha lugar no alojamento de estudantes, exclusivamente masculino. Morou numa pensão, onde cozinhava e fazia faxina aos finais de semana, para garantir o quartinho dos fundos onde ela morou. “Lá eu senti um pouco de preconceito”, lembrou, “além de mulher, negra”.
Mais tarde, Benê tornou-se professora de Gastronomia em diversas universidades, inclusive em Águas de São Pedro, onde se formou. Sua casa era toda cheia de lembranças dos alunos: temperos, panelas, quadros, livros, entre outros mimos. Ao relatar sua trajetória profissional, suas diversas experiências como cozinheira, supervisora, chef, professora, consultora; ela relembrou muitas situações em que sofreu discriminação, como o dia em que os funcionários a boicotaram.
Insatisfeitos com uma decisão que ela tomou, no dia seguinte não apareceram para trabalhar, e ela fez sozinha o trabalho da equipe de 12 pessoas. Ela terminou o dia no hospital. Ou mesmo um “processo seletivo” em que o dono do restaurante a fez limpar a cozinha toda, para depois dizer que ela estava admitida. Ela se recusou a trabalhar lá: “só limpei a cozinha porque estava muito suja”.
Se hoje a cozinha ainda é um trabalho majoritariamente feito por homens, se hoje as mulheres enfrentam dificuldades para serem respeitadas nesse ambiente, para serem tratadas igualmente, a situação era ainda mais crítica nas décadas de 1970 e 1980. Nessa época, o trabalho culinário ainda era considerado subalterno, para pessoas sem nenhuma qualificação, dispostas a fazer trabalho braçal, o que tornava a situação de mulheres como Benê ainda mais delicada. Se hoje as mulheres estão ocupando esse espaço e exigindo o que é seu por direito, isso também se deve ao pioneirismo e ousadia de mulheres como Benê Ricardo.
No dia 31 de março, Benê faleceu em consequência de um câncer de pâncreas. Nenhuma palavra na grande mídia. Na segunda-feira, 2 de abril, Ana Maria Braga fez uma singela e breve homenagem em seu programa, que não chegou a durar 1 minuto no ar. Benê foi uma pioneira, uma mulher que rompeu barreiras e que sentiu na pele o racismo, o machismo e o preconceito de classe.
Nesse momento em que a gastronomia abastece incontáveis programas televisivos, onde “especialistas” aparecem do dia para noite, chefs que assediam funcionários e funcionárias, que acreditam que ser um bom cozinheiro é gritar e atirar coisas, Benê Ricardo e tantas outras mulheres negras e de origem pobre, que lutaram incansavelmente por cada pequena conquista, continuam sendo silenciadas e invisibilizadas. Ela é mais uma mulher cujo trabalho inestimável permanece invisível e sem o devido reconhecimento do grande público.
Ela recebeu menções honrosas por sua contribuição à gastronomia brasileira, foi reconhecida no seu métier e era muito respeitada entre seus colegas. Sua figura, infelizmente, esbarrou nos preconceitos de sua época, da nossa sociedade.
* Bianca Briguglio é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, onde desenvolve tese intitulada “Lugar de mulher é na cozinha? A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais”.
Edição: Simone Freire