Parcialidade

Wanderley Guilherme dos Santos: "papel da mídia no golpe atual é pior do que em 1964"

“A imprensa colaborou com o desvirtuamento da atribuição de responsabilidade, encobrindo e omitindo”, disse o sociólogo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Para sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos, imprensa está menos plural hoje do que há 50 anos
Para sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos, imprensa está menos plural hoje do que há 50 anos - Thiago Ripper / RBA

Nesta terça-feira (17), o papel da Rede Globo, e da grande mídia como um todo, no golpe que colocou no poder o presidente Michel Temer (MDB) há exatos dois anos, está sendo denunciado por uma série de manifestações chamadas pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo sem Medo.

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Para o sociólogo e escritor Wanderley Guilherme dos Santos, que se tornou conhecido por ter prenunciado o golpe militar de 1964, o comportamento da mídia hegemônica brasileira foi ainda mais grave no golpe parlamentar de 2016. Santos é um antigo defensor da regulamentação da mídia, e segue levantando essa bandeira como essencial para a estabilização da democracia no país.

"Eu acredito que a situação atual é bem pior do que a de 1964. Na época havia uma pluralidade de veículos e meios de comunicação. Existiam alternativas de informação e de formação da opinião. Tanto que, na iminência do golpe de 1964, apenas o jornal O Globo e o Correio de Manhã no Rio de Janeiro se demonstraram favoráveis. Hoje você tem, para efeitos práticos, uma só linha", afirmou o sociólogo.

Santos destaca ainda que, na sua opinião, a principal responsabilidade das empresas de comunicação na atual conjuntura política brasileira deve-se à parcialidade contra o Partido dos Trabalhadores (PT), dentro da amplitude estrutural da corrupção no país.

"Tornou-se difícil, através de uma leitura dos jornais e do jornalismo das televisões, perceber que ao cabo, não se tratava do PT, e sim de um número pequeno de operadores envolvendo o partido. O que a imprensa mais colaborou foi no desvirtuamento da atribuição de responsabilidade, encobrindo, disfarçando e omitindo até hoje a estrutura cretina dos aproveitadores", afirmou.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Qual o paralelo que podemos traçar entre o papel da mídia no golpe em 1964 e agora, no golpe de 2016?

Wanderley Guilherme dos Santos: Eu acredito que a situação atual é bem pior do que a de 1964. Na época havia uma pluralidade de veículos e meios de comunicação, não só de jornais mas inclusive de rádios. Existiam alternativas de informação e de formação da opinião. Tanto que na iminência do golpe de 1964, apenas o jornal O Globo e o Correio de Manhã no Rio de Janeiro se demonstraram favoráveis. E tinham jornais mais combativos, como o A Última Hora, que disputavam com o leitor a opinião política sobre os acontecimentos.

Hoje você tem, para efeitos práticos, uma só linha, porque o sistema Globo, a Folha e o Estadão, são variedades da mesma uva amarga. Então não temos meios de difusão de ideias divergentes hoje. Isso sem mencionar o papel fundamental que a Rede de televisão, praticamente monopolizada pelo Sistema Globo, desfruta hoje, um meio de comunicação que era irrelevante em 1964. Houve a opinião de grande parte da população brasileira formada a partir do jornalismo da Globo e pronto, de modo que a diferença é abismal.

O senhor acredita que a formação da opinião pública sobre a Lava Jato e a prisão de Lula foi fortemente influenciada pela grande mídia?

Em grande parte, não há a menor dúvida que sim. É preciso, todavia, não sermos autocomplacentes. Existe uma parte não contaminada da investigação Lava Jato, assim como uma parte não contaminada do jornalismo do Sistema Globo, que corresponde aos fatos existente, às atitudes cometidas no tratamento da coisa pública por parte da alta burocracia do Estado, envolvendo segmentos enormes do empresariado brasileiro, e uma parte também da classe política. 

Quando o Sistema Globo, tanto impresso quanto de televisão, desvirtua um fenômeno sério e real, é uma atribuição de responsabilidade desses crimes existentes. Entre 2014 e 2016, a investigação Lava Jato concentrou-se estritamente no suposto envolvimento do Partido dos Trabalhadores (PT) nos desvios da Petrobras. E o sistema de informação nacional também atribuiu ao PT o envolvimento nos crimes cometidos contra a Petrobras.

Após o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, a investigação Lava Jato começou a descobrir que, na realidade, você tinha muitas outras quadrilhas operando não só na Petrobras, e não só com a Odebrecht, mas com outros ramos da burocracia e com o empresariado. Mais do que isso, aos poucos tornou-se difícil, através de uma leitura dos jornais e do jornalismo das televisões, perceber que ao cabo, não se tratava do PT, e sim de um número pequeno de operadores envolvendo o partido, e uma quadrilha formada por Pedro Barusco, Paulo Roberto Costa, Nestor Cerveró, Renato Duque, e Alberto Youssef, que coordenava a operação, e já havia sido preso e liberado por Sergio Moro, que novamente o liberou, assim como liberou outros membros confessos da quadrilha.

No entanto não houve agora nenhuma prova de que a alta liderança do partido estivesse envolvida, e o partido envolvido, nessas operações. Está comprovado que são operações que vem de longa data, com crescimento privado, com a participação de alguns indivíduos que, apesar de ostentarem o crachá de um ou outro partido, enriqueceram individualmente. A apropriação indevida foi privada. Portanto, a rigor, não houve envolvimento partidário algum do PT, dos outros partidos eu não sei. Não existe nenhuma prova em que da famosa expropriação de recursos da Petrobras pelo partido. Foi uma fábula.

O que aconteceu é que isso desapareceu ao longo do tempo, e reduziram a política brasileira ao PT. Toda a atividade política foi reduzida ao partido, e o PT foi reduzido aos operadores desse processo, e com isso condenou-se o PT e a atividade política em geral, como um todo. A participação da imprensa na influência política brasileira é muito pior por desvirtuar na distribuição da responsabilidade do que na informação dos ilícitos. Eles existem, e são muitos. Realmente é inaceitável que recursos públicos brasileiros continuem vulneráveis a essa possibilidade de rapina.  Mas o que a imprensa mais colaborou foi no desvirtuamento da atribuição de responsabilidade, encobrindo, disfarçando e omitindo até hoje a estrutura cretina dos aproveitadores.

Uma democratização da mídia poderia ter evitado essa conjuntura que vivemos?

Isso é leite derramado, agora, daqui para frente, devem mudar isso. Mas claro que deveriam ter feito. Mas não é por isso que está acontecendo o que está acontecendo nessa escala. Mas o tema é crucial na agenda do debate das eleições deste ano. Sem dúvida. Daqui para frente não pode continuar como está. E não tenho dúvida de que a esquerda vai trazer esse reclama, se não, que esquerda seria?

O senhor escreveu um artigo apontando que não acredita na eleição de Lula, diante de sua prisão. Qual o melhor cenário eleitoral para a esquerda, na sua opinião?

Não vou arriscar candidatos, mas reclamo da posição dos que acham que devemos ficar politicamente presos com Lula. Mas as eleições vão acontecer. Uma coisa é a defesa de Lula contra o absurdo do que estão fazendo. Dessa batalha não me ausento. Agora, não ter perspectiva não, eu não sou um preso político e nem quero ser. Não justifica a paralisia de não discutirmos assuntos e candidaturas políticas enquanto ele está preso. Isso é suicídio, ele está condenado a 12 anos. A única tribuna que pode nos restar para que se eventualmente anistie Lula é através da conquista do poder político. Não estou entendendo uma esquerda que abandona a luta pela conquista do poder político, que é a única coisa que pode nos salvar.

Edição: Juca Guimarães