Há muito presenciando cenas de manifestação de discriminação social na vida cotidiana. Quem nunca ouviu ou foi ator em taxações como: aquele sujeito é um roceiro, atrasado, um Jeca Tatu. Os camponeses são parasitas da natureza; É pobre porque é preguiçoso. Todo morador de favela é visto como marginal. Todo negro é ladino, espertalhão. “Negro, quando não suja na estrada, suja na saída”. As manifestações da cultura popular tradicional, ou folclóricas, são consideradas falsas. Quando não querem acreditar na eficácia de uma coisa vem a afirmação de que “isso é folclore”.
Da década de 1990 para a atualidade tem sido constante assassinatos de moradores de rua com incêndio de seus corpos enquanto dormem. Inúmeras chacinas de camponeses sem terra; de fiscais que atuam contra escravização de trabalhadores; de índios e prisioneiros. Pelo Facebook e pelo Twitter é comum ouvir ou ler a expressão estereotipada: “Bandido bom é bandido morto”. Quando os apresentadores de televisão falam de bandido, eles sempre se referem a criminosos pobres.
Nunca a luta pela obtenção do dinheiro foi tão forte quanto nos tempos atuais. Em face do aumento das necessidades de manutenção da vida, houve um aumento da necessidade de obter o dinheiro para satisfazê-las. Desde que se recrudesceram as contradições sociais em decorrência do neoliberalismo, circulam as ideias de que o mundo se divide em dois grupos: o primeiro é o do 1% que são os mais ricos, que açambarcam quase todos os benefícios do crescimento econômico; o segundo são os 99% que sofre a desigualdade cada vez mais humilhante. Essa colocação merece uma observação: Esse enorme conjunto de categorias sociais inclui os habitantes das favelas das grandes cidades; os pequenos agricultores do Nordeste; os ribeirinhos da Amazônia, mas também os habitantes de Manhattan em New Yiork, do bairro Tijuca no Rio de Janeiro, da Vila Olímpia na capital paulista e do bairro Buritis, em Belo Horizonte, que não são ricos o suficiente para integrar o 1%. É difícil imaginar que os interesses dessas populações sejam os mesmos ou que eles venham a constituir, no futuro, um grupo político coerente. Ao contrário, a cultura das classes médias, cada vez mais, se distancia do altruísmo e da solidariedade com relação à parte mais carente da população.
O programa de televisão “Sai de Baixo”, seriado apresentado em forma de teatro, ilustra essa situação. Seu Vavá, um empresário, mora em um apartamento no Largo do Arouche no centro de São Paulo. Com ele foi morar sua irmã Cassandra, uma viúva, ex-socialite e a filha Magda. A filha se casa com Caco Antibes, um malandro metido a executivo. O tempo todo, os membros da família tentam encobrir as suas mediocridades e pousar de ricos. Caco Antibes, que é louro de olhos azuis, vive dizendo que odeia pobre. Para ele, nos pobres tudo é ridículo, até o modo de se comportar em um velório. Os membros dessa família se enquadram no que a literatura realista nas primeiras décadas do século XX caracterizou como pequenos burgueses. O pequeno burguês está sempre em luta contra seus iguais e contra as classes inferiores; contra os desclassificados. Na verdade, o pequeno burguês é um vassalo dos tempos modernos. Gasta todo o tempo de sua existência tramando a forma de “subir na vida”. Almeja os melhores cargos na magistratura, na universidade, na profissão liberal, no serviço público e na empresa privada. Não perde a oportunidade de participar de negócios escusos e de corrupção ativa ou passiva, mas, como ninguém, sabe dissimular sua desonestidade. Ninguém sabe ocultar seus crimes melhor que o pequeno burguês. Ele não se conforma com a situação de vida modesta que leva, e daí, qualquer meio empregado para conseguir o fim é válido.
Para melhor compreender a organização da sociedade moderna e sua estrutura social, Marx percebeu que esta estava dividida em duas esferas: infra-estrutura e superestrutura. A infra-estrutura é o conjunto das forças de produção, formado pela matéria prima e a força de trabalho. Nesta esfera se incluem os não possuidores. A superestrutura é o fruto de estratégias dos grupos dominantes para consolidação e perpetuação de seu domínio. Trata-se da estrutura jurídica, política e estrutura ideológica, formada pela detenção do Estado, da religião, das artes e dos meios de comunicação. Para consolidar o domínio sobre o restante da sociedade a classe dominante usa a força física e a ideologia. É aqui que vigora a cultura da desigualdade. A ideologia é a tática ou a técnica de tornar certas idéias e crenças como verdadeiras. A classe dominante é que produz as idéias, as crenças e os preconceitos na sociedade.
Sartre, no romance “A Náusea” (1938) entendia que a sociedade em todo o mundo estava em crise. Observa-se que naquele momento o mal-estar causado pela primeira guerra mundial (1914-1918), era muito forte e já era iminente o começo da segunda guerra. Portanto, podemos dizer que a crise que vivemos em 2018 é centenária. O desequilíbrio de forças em favor das classes dominantes e contra os seguimentos dominados gera crises infindáveis na sociedade. É o próprio sistema econômico que provoca as crises e delas tira proveito, como está acontecendo no Brasil.
Quando um indivíduo está em crise psicótica ele tem vontade de destruir tudo em seu redor; ofender com palavras, espancar e matar seus próximos. A crise na sociedade se manifesta por ofensas através dos meios de comunicação; atentados terroristas; conflitos com refugiados de guerras e preconceitos étnicos; chacinas em escolas; conflitos de rua. O sintoma de crise mais grave é o de aumento da taxa de homicídios. Basta dizer que no Brasil, em 2016, foram 61.000 assassinatos, sento 71% de negros e mais de 90% de pessoas de baixa renda.
Em 2017, o conhecido intelectual e professor de lingüística norte-americano, Noam Chomsky afirmou que há muitos movimentos populares ativos, mas não se presta atenção neles porque as elites não querem que se aceite o fato de que a democracia pode funcionar. Isso é perigoso para elas. Pode ameaçar seu poder. O melhor é impor uma visão que diz ao cidadão que o Estado é seu inimigo e que ele tem de fazer o que puder sozinho. É nessa busca sozinho pela sobrevivência que o indivíduo se sente perdido. Como diz Sartre: Não vai a lugar nenhum e não sabe o que procura. Assim desprezado o indivíduo pode ser facilmente envolvido em situações criminosas.
*Antônio de Paiva Moura é docente aposentado do curso de bacharelado em História do Centro Universitário de Belo Horizonte (Unibh) e mestre em história pela PUC-RS.
Edição: Joana Tavares