Filmes que abordam a temática indígena não são raros na cinematografia mundial. Mas ter indígenas como atores, produtores e cineastas retratando a própria realidade em que estão inseridos é parte de um projeto único vivenciado na Bolívia, onde mais de 60% da população se reconhece indígena.
“Muitos filmavam os aimara, os guarani, os quéchua, mas não eram filmes que voltavam para as comunidades — diferente de Jorge Sanjinés, que fazia muitas projeções dos filmes que produziu”. Filho do renomado cineasta boliviano Jorge Sanjinés, Iván conta, em entrevista exclusiva concedida ao Brasil de Fato, como o coletivo Ukamau, criado por seu pai, mudou a narrativa das comunidades originárias no país andino.
Cada um à sua maneira e com suas diferenças geracionais, ambos trabalham com um cinema popular e contestador. "Uma arte que não tem compromisso com o seu mundo e com seu contexto não é completa" diz Iván Sanjinés ao comentar a arte militante em que ele está engajado na Bolívia.
Iván é fundador e diretor do Centro de Formação e Realização Cinematográfica (Cefrec), espaço de formação e produção audiovisual de comunidades indígenas, camponesas e movimentos populares.
O coletivo trabalha na perspectiva de dar possibilidade e conhecimento técnico para que esses povos sejam protagonistas e narrem suas próprias histórias, sem intermediários: "Ter a tecnologia não como um privilégio, mas um direito. Aqui há a ideia de começar a gerar circuitos próprios, produções próprias e meios próprios".
A iniciativa do Cefrec motivou o nascimento, em 1996, do Sistema Plurinacional de Comunicação Indígena — rede que congrega diversos veículos de comunicação e coletivos audiovisuais de povos indígenas da Bolívia.
Iván esteve no Brasil no final de novembro, em sua passagem por São Paulo (SP) para participar de uma mostra de filmes da obra de seu pai. Os principais trechos da conversa você acompanha a seguir:
Brasil de Fato: Qual a importância do resgate da obra de Jorge Sanjinés, a quem talvez os brasileiros conheçam pouco?
Iván Sanjinés: Os filmes de Jorge Sanjinés não falam só da Bolívia, mas da América Latina, do Brasil e dos povos que se levantam, que se organizam, avançam e que sonham. Se aproximar deste cinema é também se aproximar de uma proposta de sociedade que quer avançar. É um cinema anti-imperialista, que fala também do domínio dos EUA e o que eles fizeram na América Latina. E, ao mesmo tempo, é um cinema que reflete a si mesmo: que quer uma mudança, mas que respeita o olhar próprio, a cultura própria e uma cosmovisão própria.
Somos países que fomos muito submetidos — e seguimos sendo submetidos —, em grande parte, ao capital internacional, ao grande mercado, à sociedade de consumo. [A obra de Sanjinés] é um cinema que fala sobre identidade e também da possibilidade de criar, de fazer uma imagem própria, de refletir-se.
Como a linguagem de Sanjinés influenciou na produção cinematográfica do continente?
A presença de Jorge Sanjinés e do grupo Ukamau [coletivo criado por Jorge] tem um peso importante na América Latina desde os anos 1960. É um cinema revolucionário, muito contestador.
É um cinema que fala do indígena. Não é a visão europeia nem a visão do sonho americano. É uma visão muito própria, que vem das raízes de culturas indígenas que existem no Brasil, Bolívia, em toda a América Latina e que fala de outros valores e outros tipos de pensamento.
Se você tivesse que escolher um filme de Jorge Sanjinés para indicar a um brasileiro que não conhece sua obra, qual seria e por quê?
Difícil a pergunta... porque cada filme tem um significado importante dependendo da época em que foi realizado. Mas eu elegeria A Nação Clandestina [longa-metragem ficcional lançado em 1989]. Não sei se é o filme mais importante, mas, para mim, é fundamental para Bolívia e para a América Latina.
Esse filme nos fala da busca por abalar as estruturas coloniais e nos livrar de tudo isso para sermos nós mesmos — com as complexidades culturais, heranças e um legado ancestral tão importante, de centenas de anos, milenar.
A representação da cosmovisão andina, da cultura dos povos indígenas originários e dos camponeses também está muito presente no seu trabalho à frente do Cefrec, na Bolívia. Conte um pouco para gente sobre esta experiência:
O trabalho que desenvolvo com o Cefrec, que é um centro de formação, realização e difusão e produção audiovisual e de cinema criado em 1989 em La Paz, se relaciona com antecedentes prévios importantes, incluindo, desde os anos 1950, [o trabalho] das rádios mineiras.
As rádios tiveram um papel importante como um instrumento direto de comunicação contra as ditaduras militares e de protagonismo na luta social. O cinema político e social de Jorge Sanjinés e da América Latina também tem relação com a implantação do Cefrec e, claro, com todo o movimento alternativo de vídeo popular dos anos 1980 e 1990.
Então criamos o Cefrec como um coletivo que tinha como propósito se somar ao esforço que as organizações, coletivos e povos estavam fazendo para construir veículos próprios e também uma imagem própria. Estamos cansados de estar submetidos não apenas economicamente, mas também no nosso imaginário.
Há mais de 20 anos, os povos indígenas da Bolívia sonhara em fazer cinema. A comunicação e o cinema indígenas na Bolívia foram catalisadores das possibilidades de se começar a dialogar e a construir uma alternativa política, social e comunicacional.
E a possibilidade de serem protagonistas e de que todas as histórias e memórias pudessem ser contadas de maneira direta, sem intermediários; de ter a tecnologia não como um privilégio, mas um direito. Muitos filmaram os aimarás, os guaranis, os quéchuas, mas esses filmes nunca voltaram às comunidades. E aqui há a ideia de começar a gerar circuitos próprios, produções próprias e meios próprios.
Então, nos somamos a essa necessidade e energia coletiva. A gente não tinha quase nada, não havia recursos, só havia a decisão de fazer. Mas quando uma comunidade, um povo tem necessidade de algo urgente e quer se expressar, eu acho que nada pode impedir. E foi dessa forma que se iniciou o Cefrec, em 1989 e depois, em 1996, nasceu o Sistema Plurinacional de Comunicação Indígena.
O que define, para você, o cinema popular e a arte política?
Eu acho que a arte e a cultura popular são, em si, dinâmicas e revolucionárias e são parte dessa energia de transformação e de mudança. Ao mesmo tempo, na Bolívia, sempre é uma experiência coletiva e comunitária.
No cinema, a expressão artística tem, geralmente, uma base bastante coletiva e de grupo, mesmo que haja um cinema autoral. Mas, no nosso trabalho, não existem diretores de cinema, existem coletivos responsáveis. A colônia impôs muito o individualismo. Então, a arte deve ser também a expressão de todos, uma energia coletiva.
Uma arte que não tem compromisso não é completa. Se você não se compromete com o seu mundo e com seu contexto; se você não usa o que você conhece e as habilidades que te transmitiram para se comprometer com o seu mundo, talvez te falte uma grande parte.
Que mudanças concretas houve no país e para os povos indígenas desde que Evo Morales assumiu a presidência?
Se alguém conhece a Bolívia agora e esteve no país antes de Evo Morales, vai se dar conta rapidamente de que é um outro país agora.
Houve um avanço importante, sobretudo, na zona rural. Havia comunidades abandonadas totalmente, que estavam realmente esquecidas, na Amazônia, no Chaco — lugares que havia ainda escravidão de indígenas, como em fazendas guaranis.
A atenção às comunidades indígenas rurais também transformou a presença dos povos indígenas na sociedade porque eles estavam invisibilizados. Há uma presença de indígenas em diferentes níveis de decisão — em governos, prefeituras, nos ministérios, na assembleia legislativa. E também a presença das mulheres tem sido importante.
A nova Constituição é um avanço importante que Evo Morales conseguiu. Através do processo da assembleia constituinte se consegue constituir uma constituição que é a mais avançada que existe no mundo.
Foi um processo que também mudou a educação, em que se reconheceu, por exemplo, as bases regionalizadas. Cada região e cada povo indígena faz seu próprio currículo educativo, com a proteção de seu idioma, de suas tradições culturais e cosmovisão.
A comunicação também foi outro campo também. A gente [Cefrec] surgiu antes de Evo Morales, mas fizemos parte deste processo. Isso não teria sido possível tão facilmente em outro momento.
O que você acha de uma possível quarta candidatura de Evo Morales para presidência da Bolívia?
Se ele vai concorrer a uma nova eleição, se será ou não possível, tudo isso nos diz sobre um país que está bem dividido. Mas ainda tem muita coisa para fazer. Ele não trabalhou suficientemente com a juventude, por exemplo.
Existem pessoas dizendo que ele é ditador, mas se o povo não estiver de acordo, ele não vai ser eleito, certo? Claro, é importante pensar que tem que surgir novos líderes, novas referências e isso não avançou suficientemente rápido — já era para ter surgido mais alternativas a Evo Morales.
Mas o país está muito dividido. Do lado de Evo Morales estão os movimentos sociais. De outro, setores da sociedade muito influenciados pela direita empresarial, que quer privatizar tudo e fazer do país uma quase colônia.
Quando olhamos para essa realidade dizemos: ‘caramba, precisamos nos unir para que possamos seguir avançando e construindo’. Para não acontecer o que está acontecendo aqui no Brasil, que é um desastre.
Mas será a Bolívia que vai decidir isso: se queremos ou não seguir com Evo Morales neste processo. Não vai ser aqui que vai acabar tudo. A Bolívia é outra. Tivemos a possibilidade de nos empoderar e sermos donos de nossos destinos. Acho que isso não vamos perder.
Para encerrar, de maneira geral, como você avalia a cinematografia latino-americana hoje?
Temos problemas complexos e similares. Temos um domínio do cinema de Hollywood nas salas de exibilção. Um problema que temos com relação ao cinema latino-americano é que não o vemos. Nós produzimos filmes com muita força, mas está sendo cada vez mais difícil fazer cinema e cultura. Às vezes, temos que lutar ao mesmo tempo pelo público e pelas salas, criando também circuitos alternativos e outras possibilidades.
Mas acho que é um cinema que tem muito que dar e que está avançando, apesar desta limitação. Temos que se fortalecer e avançar porque esta também é uma luta do imaginário e das consciências.
Edição: Vanessa Martina Silva