Um retrato preocupante do padrão de violência no país no revelado por meio do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, nessa segunda-feira (30). Com base em indicadores de 2016, os dados mostram que 61.619 pessoas foram assassinadas de maneira violenta – o maior número já registrado pelo estudo em uma década. Dito de outra forma, os 61 mil assassinatos cometidos no Brasil equivalem ao total de vítimas da explosão da bomba atômica em Nagasaki, no Japão, em 1945.
Entre tantas informações apresentadas no Anuário, como roubo seguido de morte (2.703 pessoas morreram em latrocínios), letalidade das polícias (4.224 pessoas vítimas de intervenções policiais), desaparecidos (71.796 notificações de pessoas desaparecidas), estupros (49.497 ocorrências registradas), entre outras. No entanto, há uma que passou quase que despercebida: os gastos com políticas públicas de segurança.
Segundo o documento, União, estados e municípios gastaram, juntos, R$ 81 bilhões em 2016. Aparentemente elevada, a cifra representa, na prática, uma redução de 2,6% em relação ao ano de 2015. Quando analisado de modo separado dos entes federados em segurança pública, o dado indica que o governo federal, sob a presidência de Michel Temer (PMDB), foi quem menos investiu – uma redução de 10,3%, a maior verificada desde que o Anuário começou a ser elaborado pelo Fórum Brasileiros de Segurança Pública.
“Não basta aumentar os gastos em segurança para se diminuir os crimes. Agora, é pouco provável que reduzindo os gastos o quadro vai mudar. O dado mais relevante não é a queda geral dos gastos em segurança, mas é a queda dos gastos do governo federal”, afirma Arthur Trindade, professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ele explica que, no Brasil, os principais responsáveis pela aplicação de recursos em segurança pública são os estados, com cerca de 90% do total. Trata-se de dinheiro utilizado para pagamento de salários, previdência e custeio. No que se refere a investimentos, os repasses do governo federal são a principal fonte, por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública – que no governo Temer teve uma redução de 30,8%. Conforme Arthur Trindade, esses recursos são prioritariamente destinados a aquisição de equipamentos de proteção, viaturas, armamentos, construção de novas instalações e implementação de projetos.
“Se a gente quer mudar o quadro e fazer diferente, os investimentos são fundamentais, como criar um programa novo ou capacitar os policiais em uma nova tecnologia. Caso contrário, vamos continuar sempre no 'mais do mesmo'. Então essa redução dos gastos federais significa redução em investimentos. E isso agrava ainda mais porque, além de reduzir os gastos em segurança pública, a União está direcionando os gastos para a Força Nacional”, avalia o professor.
Enquanto o ajuste fiscal do governo federal cortou recursos em praticamente todas as áreas, não faltou verba para a Força Nacional, cujo aumento, em 2016, foi de 73,6% em comparação com o ano anterior.
“A Força Nacional é um grande band-aid. Ela é cara, os policiais são pagos com diárias, e ela é empregada nos estados para ações emergenciais, ficando algumas semanas e não incidindo na questão estrutural. Ajuda muito pouco. Com esse desenho orçamentário, a União está abrindo mão de um protagonismo para a indução de mudanças estruturais em segurança pública e está se contentando com ações imediatas e de resultados normalmente midiáticos e eleitorais”, afirma Arthur Trindade.
Luz, câmera, ação
A mágica contábil para aumentar em 73,6% os recursos da Força Nacional passa pelas mãos do ex-ministro da Justiça e atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Durante sua gestão à frente do ministério, ele alterou a lei que rege o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), permitindo que tais recursos possam ser destinados ao custeio da Força Nacional. A medida, somada a uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que determinou que o Ministério da Justiça não contingenciasse o Funpen, fez com que os recursos do Fundo Penitenciário Nacional aumentassem em 80,6% em 2016.
“O aumento do Fundo Penitenciário, que em tese seria bem vindo, na verdade não é bem isso, porque está sendo empregado para custear a Força Nacional. Por isso que nesse cenário todo de redução de gastos há o aumento dos recursos para a Força Nacional”, explica o membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Arthur Trindade ainda destaca outra alteração na legislação, que permitiu o ingresso de ex-militares das Forças Armadas, uma medida que, segundo ele, agrava ainda mais a “precariedade da Força Nacional”.
“Se o seu emprego já é na forma de band-aid, com pouquíssimos efeitos a médio e longo prazo, agora piorou mais ainda, com pessoas que não são da área e sem nenhum treinamento especial”, afirma, reforçando a falta de conhecimento desses militares na atividade de policiamento. “No pouco tempo que ficou lá, ele fez muita coisa ruim”, afirma Arthur Trindade, se referindo à passagem de Alexandre de Moraes pelo Ministério da Justiça.
Crítico da utilização da Força Nacional como política pública de segurança, ele questiona o que um contingente de 100 ou 200 policiais pode fazer quando é enviado para algumas cidades brasileiras. Mas ele mesmo trata de responder. “Se do ponto de vista prático a Força Nacional contribui muito pouco para a mudança da situação a médio e longo prazo, do ponto de vista midiático e eleitoral, é uma ação muito concreta. É muito mais interessante enviar a Força Nacional do que repassar recursos equivalentes ao que será gasto com ela. Isso dá uma manchete, o ministro aparece, mas efetivamente tem poucos efeitos. Então essa guinada tem muito mais a ver com pretensões eleitorais do que com uma política de segurança pública efetiva”.
Cenário do país
Em que pese a crítica ao modo como o governo Temer tem usado os recursos públicos na área da segurança, o professor de sociologia da UnB pondera que o contexto de violência no Brasil é consequência de muitos anos sem investimento e política específica para enfrentar o problema, o que inclui o período da presidência de Dilma Rousseff.
Ele lembra que, na campanha de 2010, a proposta da então candidata era incrementar e aperfeiçoar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), criado no governo Lula. Após a eleição, no começo de seu governo, o então ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, chegou a apresentar o Plano Nacional de Redução de Homicídios, uma proposta que, no entanto, não foi adiante.
Para Arthur Trindade, a razão talvez tenha sido alguma orientação política, em função da dimensão do problema. “Governantes têm muita dificuldade em trazer, para dentro do palácio, o problema da criminalidade. Não é bom, do ponto de vista midiático e do marketing político. Todos os marqueteiros aconselham manter distância desse tema, porque só traz desgosto”, diz ele. “O Plano Nacional de Redução de Homicídios foi o único programa elaborado com foco específico e isso já era diferente. Então, estamos basicamente há sete anos sem nenhuma iniciativa do governo federal voltada para a redução de homicídios. E os dados estão aí.”
Para 2018, ele diz que os dados de homicídios computados até o mês de setembro de 2017 já superam os do ano passado em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, assim como o número de policiais mortos no Rio de Janeiro.
“O prognóstico para o ano que vem é muito ruim. Vamos entrar em 2018 com aumento de homicídios, queda nos gastos e sem nenhuma política nacional para o tema, que é o que mais impressiona. Não temos nada”, lamenta.
Edição: RBA