Uma audiência pública voltada a unir forças pelo futuro das comunidades quilombolas ocorreu na manhã desta terça-feira (15) , em Curitiba, na Assembleia Legislativa do Paraná. O evento foi realizado com o objetivo de discutir ferramentas de resistência do movimento negro e de apoio da sociedade civil para garantir o direito dessas populações a permanecerem em seus territórios tradicionais.
O momento é de atenção e de luta. Isso porque, nesta quarta-feira (16), o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma um julgamento que se estende desde 2012. É fruto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade protocolada em 2004 pelo Partido Democratas (DEM), que questiona o decreto 4778/2003. Esse decreto regulamenta a titulação das terras quilombolas e, caso aprovado, os títulos de todos os quilombos brasileiros podem ser anulados: sem garantia legal, novas titulações também não serão mais possíveis às seis mil comunidades em todo o país que ainda aguardam o reconhecimento de seus direitos.
A jovem quilombola Isabela da Cruz, estudante de Direito da Universidade Federal do Paraná, compôs a mesa de abertura e situou o contexto em que ainda vivem negras e negros no Brasil: mais de 200 anos após uma suposta abolição da escravatura, as comunidades quilombolas ainda precisam lutar pelo direito de existir. “Não precisamos de um pedaço de papel para continuar sendo quem somos. Mas se a sociedade dá tanto valor a um documento, vamos lutar por dentro do judiciário também”, contrapôs a estudante.
O depoimento de Isabela da Cruz alcançou pontos cruciais em um debate que dê conta dos direitos e dificuldades vividas pelos povos tradicionais num Brasil gerido pelo agronegócio. “Não podemos falar em comunidades quilombolas apenas sob o olhar da lei ou da justiça, que não foi pensada a partir de nós, nem da nossa cultura”, denunciou. Para dar corpo a um debate que realmente absorva as necessidades e culturas desses povos, Isabela da Cruz alerta: numa casa de leis, como o STF, deve-se respeitar as leis do universo. “Sei que, num evento como este, em que o foco é um julgamento, parece que fugi do tema. Mas estou aqui para falar de vida, de esperança, de luta – porque é isso que as comunidades vêm fazendo desde 1988. Nossos passos vêm de longe, desde muito antes da Constituição vigente, e eu sei porque as histórias são transmitidas de forma oral”, destacou.
Encontro local pela luta nacional
A audiência foi proposta pelo deputado Professor Lemos (PT), em conjunto com a Federação Estadual das Comunidades Quilombolas do Paraná (Fecoqui). Para Lemos – único parlamentar da Alep que participou do evento - é preciso que o Estado brasileiro trate os povos tradicionais com isonomia e igualdade. “O decreto não pode ser derrubado. Ele contribui para pôr fim à exclusão”, defendeu, na audiência.
Considerando a importância de debater e garantir o direito à terra – especialmente a quem é invisibilizado pelas leis e políticas do nosso país – a conversa despertou a ancestralidade e o sentimento de conexão através da fé entre comunidades quilombolas em todo o país. “A cultura branca e o processo de europeização agem de forma tão intensa que o movimento negro não consegue dar conta de tamanha política de embranquecimento. Mulheres perdem força de luta em igrejas evangélicas, que a transformam em resignação”, ponderou a professora e historiadora Heliana Hemeterio, militante da Rede de Mulheres Negras do Paraná.
Ela também aproximou o debate legal à realidade quilombola ao defender a fé como fonte da força de luta. “Na resignação, essa força se perde. Isso vem me incomodando. Deus não tem projeto de subalternidade”, afirmou. Entre as comunidades quilombolas, a fé atravessa gerações e fortalece o enfrentamento ao racismo.
No julgamento desta quarta-feira, Isabela da Cruz cobra sensibilidade e bom senso do STF. “Quero que olhem e enxerguem a população rural do Brasil. Quando se tira um quilombola de um território tradicional, ele perde o vínculo com sua humanidade”, disse a estudante.
Quilombos no Paraná
De acordo com a Fecoqui, o estado do Paraná tem 86 comunidades quilombolas, com cerca de 20 mil famílias. Destas, apenas 37 são reconhecidas pela Fundação Palmares, instituição ligada ao Ministério da Cultura. De acordo com o Incra, nenhuma dessas comunidades foi titulada até o momento.
Edição: Ednubia Ghisi