No mesmo dia em que deputados, muitos deles processados na Justiça, negociavam abertamente bilhões de reais em emendas parlamentares em troca de votos para barrar a denúncia contra o presidente Michel Temer – acusado de corrupção passiva pela Procuradoria Geral da República (PGR) –, desembargadores do Rio de Janeiro decidiam manter preso o jovem Rafael Braga. O julgamento de seu habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi adiada depois do pedido de vista (mais tempo para analisar) de um dos desembargadores, mas dois magistrados já haviam votado pela continuidade da prisão.
Aos 28 anos, o catador de material reciclável foi condenado em primeira instância a 11 anos e três meses de reclusão por supostamente ter sido encontrado com 0,65 gramas de maconha, 9,3 gramas de cocaína, além de um rojão, no complexo de favelas da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 16 de janeiro de 2016. Para esta condenação, bastou a palavra dos policiais militares que efetuaram a prisão de Rafael. O depoimento de uma testemunha ocular, que afirmou que Rafael não portava nada e teria sido agredido e ameaçado pelos policiais, foi completamente desconsiderado pela Justiça, além da alegação do próprio jovem, que confirmou o flagrante forjado, após ter sido intimidado.
Preso político da democracia
No dia em que foi preso, Rafael Braga usava tornozeleira eletrônica porque respondia em liberdade a uma das acusações mais esdrúxulas da história recente do Judiciário brasileiro. O caso ocorreu em 2013, mais precisamente no dia 20 de junho, quando o Brasil estava em chamas por conta dos protestos de junho que sacudiam as principais capitais do país. Após uma manifestação que reuniu centenas de milhares de pessoas no centro do Rio, Rafael foi abordado por dois policiais civis enquanto saía do local onde guardava latas e garrafas que ele coletava pela cidade. Ele não havia participado da manifestação nem pertencia a qualquer grupo político, mas prevaleceu uma única acusação: portar uma garrafa de desinfetante Pinho Sol e outra de água sanitária que, na palavra dos policiais, seriam usadas para confecção de um coquetel molotov. Laudo do Esquadrão Anti-bombas do Rio chegou a descartar qualquer possibilidade desse material ser transformado em artefato explosivo, mas a acusação foi mantida.
Rafael Braga entrou para a história como a única pessoa condenada no contexto dos protestos de junho de 2013, mesmo sem nunca de participado de nenhuma manifestação. Este caso tornou-se um símbolo da luta do movimento negro contra o racismo institucionalizado e a seletividade do Judiciário brasileiro em relação à população pobre, negra e da periferia.
Pobreza criminalizada
“O crime do Rafael Braga não é nem nunca foi portar Pinho Sol ou responder a uma falsa acusação de tráfico drogas. O crime dele é ser é ser pobre e morar na periferia. Um caso desses, sem pé nem cabeça, demonstra o quando a Justiça brasileira não tem nenhum pudor em criminalizar e promover a exclusão de pobres e negros”, afirma Beatriz Lourenço, militante da Frente Alternativa Preta.
“A primeira condenação do Rafael, de portar Pinho Sol, chama atenção pela anormalidade, pelo ridículo e absurdo do caso em si, mas a segunda condenação dele chama atenção pela normalidade. É o que acontece no cotidiano dos mais pobres. Ele estava num área de periferia, usava tornozeleira eletrônica e, portanto, escancarava a imagem do ‘deliquente’ a ser reprimido”, analisa Lucas Sada, advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos e que acompanha o caso de Rafael desde o início.
A manutenção da prisão de Rafael Braga contrasta com a rápida liberação de Breno Borges, filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul (TRE-MS), desembargadora Tânia Freitas. Breno, jovem de classe média alta, filho de família influente, foi preso com 130 kg de maconha, além de armas de grosso calibre e dezenas de munições. Ele também é acusado de tramar o resgate de um traficante preso no interior do estado. A revogação de sua prisão se deu apenas poucos dias após a detenção, com base em um laudo médico que o autorizava a trocar a cadeia por um tratamento psiquiátrico em uma clínica particular especializada.
Outro que teve melhor sorte que Rafael Braga, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), ex-assessor do presidente Michel Temer e flagrado portando uma mala com R$ 500 mil em propina, ficou poucas semanas na prisão e já foi posto em liberdade para responder seu processo.
O habeas corpus que pede a libertação de Rafael Braga cita a posição do Supremo Tribunal Federal no reconhecimento de que até mesmo pessoas pertencentes a poderosos grupos econômicos e políticos, e acusados de corrupção e desvio de recursos públicos, tem direito a responder em liberdade. “Sendo assim, por qual razão, o paciente, pobre, semianalfabeto, morador de favela, acusado de praticar, sem violência, o comércio de uma quantidade pequena de drogas ilícitas deve ser privado de sua liberdade antes da formação definitiva de culpa? O Estado de Direito se caracteriza pela sujeição de todos, de modo igualitário, à Lei”, diz o pedido da defesa. Não é bem a realidade do sistema penitenciário.
A manutenção da prisão de Rafael Braga reforça justamente o perfil dominante do sistema carcerário do Brasil, onde mais da metade (55%) tem até 29 anos de idade e a grande maioria (61,67%) é composta de negros ou pardos, com baixa ou nenhuma escolaridade. Além disso, quase 40% do total de encarcerados (quase 250 mil pessoas) são presos provisórios, que não tiveram sequer o julgamento concluído. Para Douglas Belchior, ativista do movimento negro, “o Judiciário sempre foi um instrumento a serviço do encarceramento e repressão da população preta, historicamente falando. A justiça, as leis federais e seu braço executor, a polícia, sempre foi um instrumento de dominação, sobretudo do povo negro”.
Edição: Simone Freire