Uma das mudanças presentes na Lei n. 13.467/2017, a malfadada Reforma Trabalhista, que mais desfigura o Direito do Trabalho brasileiro como hoje o conhecemos é o trabalho sob o regime de contrato intermitente. Se a motivação maior dessa reforma é “modernizar” as relações capital-trabalho em nosso país (nas palavras do patronato) - ou seja, “flexibilizar” as cláusulas de natureza indisponível nos contratos de trabalho, garantidoras de efetividade de direitos fundamentais sociais aos trabalhadores, tal figura jurídica criada modifica profundamente o ser do trabalho como hoje presente na CLT, pondo em risco a garantia constitucional de um salário digno e mínimo.
O contrato de trabalho intermitente se aproxima do zero-hour contract, principal contrato de trabalho em uso na Inglaterra, de modo que a sua característica é que o trabalhador seja convocado conforme a demanda do empregador e, assim, sua remuneração tem como base apenas essas horas que efetivamente trabalhadas. Nesses termos, aprofunda a tendência já havida nos últimos anos de quebra da estabilidade e durabilidade nos vínculos de emprego, sentimento comum da classe trabalhadora nos anos de auge do capitalismo fordista. São esses os termos presentes no texto da Lei, que acrescenta o parágrafo terceiro ao artigo 443, na CLT:
“Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.
(...)
§ 3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria”.
Nesses termos, em tal modalidade de relação de trabalho, há a constituição de um vínculo de emprego, porém havendo a remuneração do empregado de acordo com o tempo em que é efetivamente convocado para trabalhar, na contramão do que hoje prevê a CLT, em que a remuneração leva em conta a jornada mensal de trabalho. Logo, é possível concluir-se que tal tipo de contrato de trabalho permite a contratação de funcionários sem horários fixos, pois serão convocados para trabalhar conforme a demanda e o critério do empregador e, ainda que a convocação deva ocorrer com pelo menos três dias de antecedência, não garante uma jornada mínima de trabalho, sendo o empregado remunerado pelas horas efetivamente trabalhadas.
Ademais, sobre essa nova forma de contrato de trabalho, deve-se esclarecer que o empregado é convocado a trabalhar com três dias de antecedência, momento em que é informado da jornada a ser cumprida. O empregado pode aceitar ou não a convocação. O pagamento é realizado conforme o trabalho realizado, observando os períodos de prestação de serviços, que podem ser em horas, dias ou meses. O período de inatividade não é considerado tempo à disposição, de modo que a empresa não tem obrigações trabalhistas junto ao empregado nesse período.
Outra inovação nas relações laborais com tal instituto é que, nos termos do art. 452-A, §4º, acrescentado à CLT por este projeto de lei, será facultado ao empregador convocar o empregado para trabalhar e desistir da execução do serviço sem justo motivo, pagando-lhe apenas 50% da remuneração que seria devida, ou seja, possibilitando o pagamento de valor inferior ao salário mínimo proporcional.
Como se pode ver, com este novo contrato, de contornos inéditos até então na legislação laboral brasileira, há uma grande quebra de dois pilares do Direito do Trabalho:ma quebra da presunção de que os contratos de trabalho são por prazo indeterminado e a jornada de trabalho deixa de ser sinônimo de tempo a disposição do empregador, para a se restringir ao tempo de trabalho efetivamente prestado.
Portanto, em lugar de o contrato de trabalho a prazo indeterminado ser a regra nas relações capital-trabalho e no Direito do Trabalho brasileiro, sendo outras modalidades apenas de aplicação supletiva, a regulamentação dada ao contrato de trabalho intermitente poderá incentivar a sua adoção de modo destacado, passando a ser a regra, a principal forma de contratação a vigorar no Brasil, com pagamento de salário proporcional ao período trabalhado, no lugar do contrato de trabalho a prazo determinado ou indeterminado, não representando propriamente uma alternativa ao desemprego ou informalidade já existentes, como afirmam as vozes do setor empresarial ser o objetivo. Em lugar disso, haverá uma profunda precarização das condições de trabalho, flagrantemente no salário e na jornada laboral, bem como levará os trabalhadores a prestarem serviços a duas, três ou mais empresas simultaneamente.
Na dimensão coletiva-sindical das relações de trabalho, tal modalidade de contratação apenas aprofunda a tendência de enfraquecimento do valor de solidariedade no trabalho no seio da classe trabalhadora, uma vez que a convivência entre trabalhadores no seu local de trabalho será cada vez mais esporádica, em cada um dos vários trabalhos que se terá que manter. Logo, o “outro” no ambiente de trabalho ainda mais passa a ser um estranho, dificilmente podendo ser conjugado como um “nós”.
Enquanto os defensores da Reforma afirmam que o espírito desta reforma é a valorização das negociações coletivas de trabalho, tal tendência só enfraquece ainda mais o movimento sindical brasileiro e suas entidades de base, bem como a sua força política e capacidade de mobilização obreira e de negociação junto ao patronato, pois dificilmente um trabalhador se enxergará representado em um sindicato travando relações de trabalho tão flexíveis e fluídas, trabalhando em duas, três ou mais empregos aos mesmo tempo.
Mesmo na visão mais liberal de sindicalismo, que é a existência de “sindicatos por empresa”, resta essa possibilidade organizativa fulminada – o trabalhador, ideologicamente, estará ainda mais preso em sua individualidade, pensando nos freelas e jobs nos quais tem que fazer a sua “viração” e retirar seu sustento mínimo no final do mês.
Do ponto de vista da luta por direitos e da luta política geral, impacta profundamente as possibilidades de organização da classe trabalhadora desde o trabalho, ou seja, fica ainda mais difícil a construção da consciência de classe junto ao proletariado. Logo, se resta dificultada a constituição dos trabalhadores enquanto “classe-em-si”, na luta reivindicativa por melhores condições de trabalho, na defesa de interesses comuns, as mudanças na relação capital-trabalho presentes na Reforma Trabalhista também fortalecem o capital e seu projeto neoliberal de sociedade, ao ser um forte golpe no processo consciência do pertencimento de classe, o forjar dos trabalhadores em “classe-para-si”, a fim de assumirem seu papel de sujeitos da história na luta de classes.
Ante a todos os elementos acima expostos que se pode reiterar qual o caráter da reforma trabalhista: seu objetivo, como um todo – e especificamente a modalidade de trabalho intermitente – visa o desmantelamento dos direitos trabalhistas, historicamente conquistados. Portanto, é pura e simplesmente uma resposta do capital à sua profunda e rastejante crise estrutural, iniciada no ano de 2008, aqui no Brasil em 2011, buscando-se a redução dos custos com capital variável no processo de acumulação e valorização do capital.
Entretanto, a redução do patamar mínimo civilizatório nas relações capital-trabalho em nosso país, suprimindo direitos trabalhistas presentes na Constituição Federal, flexibilização da jornada e da remuneração do trabalho não conferem competitividade à economia do país e, menos ainda, geram empregos de qualidade – para não falar do ataque frontal ao sindicalismo e à organização da classe trabalhadora desde o trabalho.
*Advogado trabalhista e militante da Consulta Popular no Recife
Edição: Monyse Ravenna