“A gente precisa parar com essa ideia de que a questão social é só uma questão de justiça social. Ela também é uma questão econômica.” A opinião é da ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Dilma Rousseff, Tereza Campello. Para ela, o raciocínio de que a inclusão social se traduz em dinheiro circulando na economia parece simples, mas o empresariado demonstra não compreendê-lo.
“Eu me espanto de ver empresário comemorando queda da inflação que advém de o país ter entrado em recessão”, diz. Para ela, a ideia de que cortar gasto social e renda da população pode ser bom para a economia “é um suicídio” para o setor empresarial. “Realmente, é de dar um pato de presente para os nossos empresários.”
Segundo a ex-ministra, hoje no país existem 550 mil famílias inscritas, esperando para receber o cartão do Bolsa Família, muitas em situação “dramática, provavelmente com crianças”, esquecidas pelo governo Michel Temer.
“Disseram que não iam cortar o Bolsa Família, mas olhe que escândalo não divulgado: quando a presidenta Dilma saiu a gente tinha 13 milhões e 800 mil famílias no programa, hoje temos 12 milhões e 600 mil. Um milhão e duzentas mil a menos.
A situação é muito grave, avalia Tereza. Principalmente porque todas as políticas sociais foram objeto de “cortes profundos” de recursos, num momento de grave crise econômica, exatamente quando essas políticas são mais necessárias.
Para Campello, o sério risco que o Brasil corre de voltar ao mapa da fome, como foi divulgado no fim de semana, é um grave sintoma desse contexto. E não é por acaso que foi destacado inclusive pela mídia comercial do país. "Porque hoje já incomoda. Quando a pobreza está no Nordeste, no interior, aí a classe média não se incomoda. Mas a pobreza hoje está de novo nas ruas do Rio de Janeiro, nas calçadas de qualquer cidade de médio e grande porte no Brasil e começa a aparecer nas pequenas."
Tereza Campello falou por telefone à RBA.
RBA - O que acha da condução das políticas sociais pelo governo Temer, em especial o Bolsa Família?
Tereza Campello - A grande questão da agenda social é que ela passou a ser o colchão de ajuste da política econômica. Deixou de haver prioridade em geral, em saúde, educação, Bolsa Família, ajuste do salário mínimo, agricultura familiar. Tinha um conjunto de políticas que passou a se constituir numa rede de proteção que todos os países desenvolvidos têm. Não interessa se está crise ou não, mas tem que ter uma rede de proteção num país ainda tão desigual como nosso, para superar as desigualdades. Era isso que a gente vinha fazendo.
O caso mais famoso é o Bolsa Família. Mas tem o Luz para Todos, as política de cisternas etc., um conjunto de ações que concorreram para que o país saísse do mapa da fome, reduzisse as desigualdades. Estamos tendo um corte muito grave no conjunto das políticas, em educação, saúde, assistência social e no Bolsa Família. Todas as políticas tiveram cortes profundos de recursos num momento em que essas políticas são mais necessárias, na medida em que o país está numa crise tão grave, o desemprego sendo o maior da história do IBGE, com 14 milhões de desempregados. O aumento da pobreza no país salta aos olhos. Já há denúncias mostrando que a situação de fome voltou. Provavelmente o Brasil vai voltar ao mapa da fome.
O fato de a mídia comercial destacar essa reversão negativa não é emblemático?
Porque hoje já incomoda. Quando a pobreza está no Nordeste, no interior, aí a classe média não se incomoda. Mas a pobreza hoje está de novo nas ruas do Rio de Janeiro, nas calçadas de qualquer cidade de médio e grande porte no Brasil e começa a aparecer nas pequenas. A população de rua aumentando, as pessoas dormindo na rua nesse frio que está fazendo em metade do país. Até isso é tão gritante que a grande imprensa não consegue esconder.
Na medida em que se corta a Previdência, como eles pretendem fazer, que é aprovada a lei da terceirização, significa que os idosos vão ter menos proteção, o salário das pessoas diminui. Tem gente que está desempregada e vai ter redução de salário. Estamos voltando ao padrão da década de 1990.
Disseram que não iam cortar o Bolsa Família, mas olhe que escândalo, não divulgado: quando a presidenta Dilma saiu a gente tinha 13 milhões e 800 mil famílias no programa, hoje temos 12 milhões e seiscentas mil. Um milhão e duzentas mil a menos.
Com tendência de piora no quadro...
Tinha que ter aumentado. Esse padrão você tinha quando o desemprego era considerado inclusive em situação de pleno emprego. Então piora o desemprego, tem queda na renda das famílias, aumento das pessoas em situação de informalidade e precariedade e corte do Bolsa Família, exatamente no momento em que as famílias mais precisam. Se você multiplicar 1,2 milhão de famílias por quatro, está falando em mais de 4 milhões e meio de pessoas que perderam a única segurança que elas tinham, que é um recurso baixo. Quando a classe média fala do Bolsa Família, ela fala em cima de uma especulação. Uma pessoa recebe em média do Bolsa Família 180 reais.
Não só as famílias, mas a economia das pequenas localidades se beneficia do Bolsa Família...
Com certeza, das pequenas e das grandes. O impacto, o retorno do Bolsa Família é muito maior do que o que é gasto com ele. Um número muito interessante, calculado pelo Marcelo Neri mostra que, para cada real que você gasta com o Bolsa Família, o retorno para a economia é de R$ 1,78. Retorna para o PIB. Em geral as pessoas gastam esse dinheiro com coisas produzidas aqui e esse dinheiro alimenta a economia. Isso em qualquer lugar, mas nas pequenas localidades esse impacto é gigantesco. Num município pequeno, entra o dinheiro do Bolsa Família e a pessoa compra comida, muitas vezes produzida na própria região. Esse dinheiro circula no comércio, na agricultura familiar.
A situação é grave. Os prefeitos estão sendo estimulados a não incluir mais gente no cadastro. Tem gente esperando pra receber, e o governo dizia “não tem ninguém na fila, por isso está diminuindo”. É mentira. Tem 550 mil famílias com inscrição esperando para receber o cartão, provavelmente com crianças. É motivo de muita preocupação.
Na atual situação do país, existe alguma perspectiva positiva?
A reforma da Previdência e a terceirização, que fragilizam os trabalhadores, vão provocar desconstituição e desorganização da economia do país. Com isso só piora a situação econômica.
O mercado financeiro espera por inflação e crescimento econômico menores este ano e, por outro lado, Michel Temer tem dito que "não existe crise no Brasil". Como vê essa conjuntura?
Primeiro, em que mundo essa pessoa está vivendo? Todo mundo sabe que o país está em crise. Mesmo o grande capital, médios empresários, a população pobre. É evidente a piora das condições econômicas, em especial para a população pobre. O que mais me chama a atenção é a não reação dos setores empresariais brasileiros, porque essa ideia de que maior recessão é boa para o país não pode ser alimentada. Vai ter redução da inflação porque vai ter mais recessão. Que absurdo. Não posso comemorar uma queda da inflação que advém da piora da economia. O esforço que a gente fazia na área social era também na área econômica.
A gente precisa parar com essa ideia de que a questão social é só uma questão de justiça social. Ela também é uma questão econômica. Incluir milhões de pessoas com melhoria do emprego, formalização do trabalho, acesso a benefícios sociais é dinheiro circulando na economia. É bom para a economia social, para o comércio, para os bancos e deveria ser considerado bom para todo mundo. Entrar nessa onda de que cortar gasto social e renda da população pode ser bom para a economia é um suicídio para os empresários brasileiros. Só é bom para rentista, que quer viver de juros. O setor empresarial deveria ser o primeiro a questionar os cortes profundos na área social, além da população, que é a maior prejudicada.
E o que leva o empresariado a ter essa postura?
Acho que uma parte deles é rentista, tem como principal fonte a especulação financeira. A gente esteve 13 anos no governo e mostrou que era possível trabalhar com a ideia de fortalecer a economia e o mercado interno de massas. Outra parte acho que é obtusidade mesmo. Não tem outra explicação. Fizemos um governo em que fortalecer o mercado interno de massas era programático, vem do programa do Lula lá em 2002: fortalecer a agricultura, a produção de alimentos, a indústria nacional, garantindo uma demanda, que vem de onde? Exatamente aumentando a capacidade de renda da população. E isso aconteceu. Eu me espanto ver empresário comemorando queda da inflação que advém de o país ter entrado em recessão. Temos um caminho que é o da denúncia, mobilização e organização da população para reverter esse quadro. Se depender dos empresários, já vimos que eles não estão conseguindo enxergar a sua própria bancarrota.
Considerando a PEC do teto já aprovada, as tentativas de reforma trabalhista, reforma da Previdência, volta da pobreza, leilão do pré-sal e desmonte da Petrobras, tudo isso é reversível se houver um novo governo progressista?
Acho que vamos ter um trabalho muito maior. O Brasil perdeu capacidade de regulação. Vender nossas reservas de petróleo significa perder capacidade de regular não só essa área mas ter recursos para educação e saúde, como a gente tinha previsto na legislação do pré-sal. Perder terras, abrir o Brasil a terras estrangeiras, como querem fazer, perder reservas minerais é perder capacidade de regulação. Mas acredito que é possível reverter uma grande parte, com um governo progressista comprometido com a população e retomando a ideia de que não existe dicotomia entre o social e o econômico.
Mas vai demorar mais tempo para voltar a uma trajetória de redução da desigualdade com crescimento, que foi a primeira vez que aconteceu no Brasil. A gente vinha num passo avançado de redução da pobreza, que voltou a crescer. O Brasil já cresceu na década de 70, no auge do café. Mas a primeira vez que o país cresceu reduzindo desigualdade foi no governo Lula. O último documento que o próprio FMI soltou dizia claramente que, quanto maior a desigualdade, pior é o crescimento. O esgarçamento do tecido social com aumento da desigualdade é ruim para o desenvolvimento econômico. São palavras do FMI.
Aí o Brasil vem de novo ressuscitar políticas velhas que já foram implantadas na década de 90 e deram em nada, com o diagnóstico de que o país estava em crise porque o Estado gastava muito. Venderam estatais, não diminuiu a dívida. Tivemos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso tentando essa receita. O Brasil congelou a pobreza, o crescimento e foi uma década perdida.
Ao prever aumento de impostos, Henrique Meirelles reconhece o fracasso da política econômica?
Acho que, primeiro, é o reconhecimento de que na verdade o problema não estava na despesa, mas na receita. O Brasil tem muita desoneração que precisava ser revista, mas o Brasil precisa começar a enfrentar a matriz tributária, que onera o trabalhador, o consumo. O Brasil fez essa discussão no período pós-constituinte de 1988 e parou de fazer. Só se discute aumento ou redução de imposto. Não se discute retomar o debate sobre cobrança de impostos diretos e redução de impostos que incidem sobe o consumo, prejudicando a dinâmica econômica. Precisamos retomar discussões mais estruturais no país. E o Brasil precisa de uma reforma política urgentemente, que impeça uma situação como a do ano passado, tirar uma presidenta honesta sem nenhum crime de responsabilidade, colocando no poder um grupo comprometido com a desonestidade, dilapidando o Estado, para inclusive se manter no poder. Sem uma saída política, que a gente tem que ter com eleições diretas, é impossível imaginar que a economia vai se resolver. O que estão fazendo com a economia só vai nos jogar mais abaixo na recessão profunda. Realmente é de dar um pato de presente para os nossos empresários.
Economistas progressistas criticam o ajuste fiscal do governo Dilma, a escolha por Joaquim Levy para ser ministro e políticas como as desonerações. Como avalia essas críticas?
Em 2015 tomamos medidas que eu desaconselharia. Parte das medidas fiscais de 2015 foi desastrosa. Mas é diferente de dizer que fizemos “a mesma coisa” de hoje. Uma coisa é tomar medidas de ajuste fiscal de curto prazo e depois de um período rever. Como foi feito com a saída do próprio Levy e o esforço de tentar rever as medidas. Tentamos rever parte dessas medidas, já com Nelson Barbosa. Mas o esforço que a gente fez de rever essa linha fiscal não foi aprovada por esse Congresso que tirou a presidenta.
Eu também critico muito as medidas do Levy, em especial não deveria ter aprofundado tanto as desonerações, com a ideia de que os empresários iriam manter as contratações. Inclusive isso deveria ter sido mais fiscalizado. Mas, quando você toma medidas de caráter fiscal no curto prazo, pode rever. Você resolve cortar despesas e mais adiante pode chegar à conclusão de que não deve cortar, mas recompor. Mas o que eles fizeram agora foi botar essas medidas de ajuste fiscal na Constituição Federal. Isso não é ajuste fiscal. Ajuste fiscal de 20 anos? Isso não existe. Nenhum país do mundo fez.
Edição: RBA