“Não podemos acreditar que a existência de leis seja o suficiente. Nós sabemos do aumento dos índices de violência contra a mulher, dos assassinatos de mulheres transexuais que não param, dos abortos ilegais que ocasionam muitas mortes de mulheres, da desigualdade do salário entre homens e mulheres, das mulheres que ocupam muito mais o espaço privado e doméstico do que o público.” A fala da advogada Júlia Melim Borges Eleutério, 37 anos, justifica bem a importância do escritório feminista e LGBTI inaugurado em junho, na cidade Joinville, Norte de Santa Catarina.
Idealizadora do projeto, Júlia diz acreditar que são as advogadas quem podem reconhecer com mais facilidade as necessidades da própria mulher sob a perspectiva jurídica e das discriminações. Com uma equipe formada somente por mulheres, “o escritório tem viés feminista com atuação também voltada às causas LGBTI, pois várias mulheres transexuais, lésbicas e bissexuais sofrem discriminação em razão da identidade ou orientação sexual”, explica. “Outro fator importante e que deve ser esclarecido é que vamos atender homens, sim. Obviamente o nosso maior interesse é o atendimento de mulheres, porém, partimos da premissa de que a desconstrução do machismo inicia-se a partir do diálogo com os homens também”, acrescenta.
O escritório atende nas áreas Cível, Família, Trabalhista Administrativo, Penal, Direitos Sexuais e Reprodutivos e Direito à Saúde, além da Infância e Juventude. Mas, antes mesmo de iniciar lançar o projeto, a advogada já prestava serviço para mulheres e comunidade LGBTI em processos de divórcios, guarda, alienação parental, violência de gênero, assédio sexual no ambiente de trabalho, crimes sexuais, violência obstétrica e crimes cometidos em razão de discriminação por orientação sexual.
Segundo Júlia, que também preside a Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Joinville, a proposta do escritório faz parte do processo de ressignificação da própria atuação profissional em busca de conciliar feminismo e advocacia. “Nós, mulheres, sabemos a violência que sofremos por termos esta condição. Sabemos quais são as dificuldades que enfrentamos com a cultura do machismo. Ressignificar minha atuação profissional significou e está significando reorganizar nossos interesses de atuação para o atendimento das mulheres.”
Para ela, o feminismo tem esse papel de conscientizar as mulheres sobre a busca pelo empoderamento, pela autonomia e pelo respeito. “Acredito que temos um caminho longo pela frente ainda, mas juntas podemos fortalecer as pautas e somar. Sou otimista em relação às mudanças, apesar do cenário de crise política, social e econômica que estamos enfrentando do momento. Nutro minha força feminina a partir dos espaços que tenho ocupado.”
Nascida em Joinville, ela se reconhece feminista desde a infância. “Sempre me empoderei e busquei compreender a minha importância enquanto mulher nesta sociedade, enfrentei obstáculos impostos pela cultura do machismo e sempre tive uma vertente subversiva e de combate às violações de direitos, inclusive os meus.” Influenciada pela falecida avó Liége Maria Alves, que atuou como colunista em um jornal joinvilense, a advogada agarrou-se ao exemplo de dedicação e fortaleceu o conhecimento na área, na docência e no ativismo em diversos espaços.
Além de Júlia, integram o escritório: a advogada Brana da Silva, a assessora de comunicação Jessica Michels, a perita criminal Ruth de Souza Corrêa (está requerendo o processo de reabilitação na OAB) e a psicóloga Lilian Mara dos Santos. Vagas de estágio remunerado e voluntário devem ser abertas no próximo ano. Acompanhe mais sobre esse trabalho na página do escritório no Facebook. Júlia conversou com o Portal Catarinas e deu detalhes na entrevista abaixo de como funciona o serviço prestado em Joinville.
Catarinas: Como surgiu a ideia de criar um escritório de advocacia feminista?
Júlia: Sou advogada há 11 anos e desde sempre tive escritório de advocacia, mas no decorrer da minha vida profissional e acadêmica fui me deparando com alguns encontros e desencontros que contribuíram para que eu pudesse consolidar um escritório de advocacia feminista. Em 2015, defendi minha dissertação de mestrado e pesquisei sobre a desigualdade de gênero nas relações do trabalho, texto que vou publicar pela Editora Empório do Direito e lançar no Seminário Internacional Fazendo Gênero, nos dias 31.07 a 04.08, na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), com o título ‘(Des) Igualdade de gênero nas relações do trabalho: por um novo paradigma relacional a partir da desconstrução da cultura machista’.
Paralelamente às pesquisas sobre as questões de gênero e sobre os direitos das mulheres, tive a oportunidade de militar profissionalmente na área dos direitos das mulheres quando coordenei projeto acadêmico de atendimento jurídico às mulheres em situação de violência, somado ainda à experiência que tive por dois anos no acompanhamento de audiências nas Varas da Família de Joinville, enquanto professora de escritório modelo da Faculdade Guilherme Guimbala. Assim, pude perceber que as mulheres podem e devem receber um tratamento mais humanizado e acolhedor. Como militante do movimento feminista e nos espaços que milito, descobri que posso, através da advocacia, ajudar mulheres que estão em situação de violência ou desigualdade. Posso ajudar tanto na orientação, no empoderamento e na reivindicação de direitos a partir do acompanhamento dos processos judiciais, assim exercendo meu feminismo para tentar desconstruir a cultura do machismo que está por lá enraizada. Existe uma demanda das mulheres a serem acolhidas por advogadas.
Será o primeiro escritório com essa finalidade em Santa Catarina?
Até podem existir outros escritórios compostos só por advogadas, mas acredito que com a bandeira feminista e com o foco no atendimento das mulheres, esse seja o primeiro ou um dos primeiros.
A sede do escritório será em Joinville, certo?
Sim, o escritório está situado em Joinville. Mudamos de sede há dois meses para podermos atender as mulheres num espaço mais humanizado e acolhedor. Nossa sala de atendimento não segue padrão, ou seja, não temos mesa de reunião (que impõe um certo autoritarismo e excesso de formalidade). Implantamos uma sala com sofá, poltronas, almofadas e aromas. Acrescento que o escritório tem viés feminista com atuação também voltada às causas LGBTI, pois várias mulheres transexuais, lésbicas e bissexuais sofrem discriminação em razão da identidade ou orientação sexual, por exemplo, sem contar os recortes classe e raça. Outro fator importante e que deve ser esclarecido é que vamos atender homens, sim. Obviamente o nosso maior interesse é o atendimento de mulheres, porém, partimos da premissa de que a desconstrução do machismo inicia-se a partir do diálogo com os homens também.
Você já atende casos de mulheres e comunidade LGBTI? Se sim, são cerca de quantos? São casos de Joinville e quais outras cidades? A maioria dos casos é de violência doméstica, violência sexual, direito de família, pensão alimentícia e direito trabalhista?
Sim, já atendo casos de mulheres e comunidade LGBTI. Desde os processos de divórcios, guarda, alienação parental, violência de gênero (física, moral, sexual, patrimonial), assédio sexual no ambiente de trabalho, crimes sexuais, violência obstétrica, crimes cometidos em razão de discriminação por orientação sexual, etc. É difícil contabilizar, mas neste ano, por exemplo, temos atendido com bastante frequência várias mulheres que estão inseridas nestas situações e algumas pessoas que sofreram preconceito e discriminação em razão da orientação sexual. Recentemente, atendemos uma situação de violência sexual – estupro; um caso de ameaça grave a mulher e uma situação grave de violência obstétrica. Infelizmente, esse cenário nos assusta, mas é desafiador para nós podermos provocar a transformação a partir da nossa experiência enquanto ativista e profissional do Direito. Afinal de contas, o Direito é ou não o propulsor da justiça social?
Por que você decidiu colocar esse projeto em prática? Quais as motivações, preocupações, causas?
Desde que iniciei minhas pesquisas das questões de gênero e passei a militar mais fortemente junto aos movimentos sociais eu percebi que poderia atuar profissionalmente em favor das mulheres. Minhas motivações advêm do otimismo que sinto ao perceber que temos avanços junto ao Poder Judiciário, apesar de poucos. Acho que outro ponto é que posso impactar o Judiciário a partir das minhas teses, na medida em que tento desconstruir a cultura do machismo através dos argumentos que são construídos pela teoria feminista e que me dão embasamento para os processos. Como ativista feminista e dos direitos humanos eu parto do princípio de que sou indispensável à administração da Justiça, podendo contribuir para a formação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, justo, livre e solidário, além disso, sinto que a militância profissional fortalece meu feminismo.
O escritório atenderá em quais áreas? Cível, Família, Trabalhista Administrativo, Penal, Direitos Sexuais e Reprodutivos e Direito à Saúde?
Sim, essas são as áreas de atuação, sendo que também atuamos na área da infância e juventude, nos casos de adoção e defesa das adolescentes, por exemplo.
Será feito atendimento gratuito?
Nós, eventualmente, atuamos para as pessoas que estão vinculadas a algum movimento social ou que são indicadas pelas redes de apoio. E realizamos orientações e encaminhamentos de maneira gratuita com algumas demandas que recebemos, principalmente, por meio das nossas redes sociais pessoais. Como também não é uma procura profissional, não há como realizar a representação de todos esses casos. No entanto, fazemos um trabalho humanizado de informar as pessoas de quais são os possíveis caminhos, por exemplo.
Edição: Catarinas