Entrevista

"A próxima batalha será pela criminalização da homofobia", diz advogada trans

Gisele Alessandra Schmidt ficou conhecida após sustentação oral no STF sobre o direito da pessoa trans de mudar de nome

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Advogada paranaense Gisele Alessandra Schmdit, que defendeu a mudança do prenome e sexo no registro civil em ação no STF
Advogada paranaense Gisele Alessandra Schmdit, que defendeu a mudança do prenome e sexo no registro civil em ação no STF - OAB-PR

A cada 25 horas, uma pessoa é assassinada por homofobia no Brasil. O dado, revelado no Relatório 2016 de Assassinatos LGBT, do Grupo Gay da Bahia LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais), assusta. Mas esse cenário pode mudar se depender da atuação da advogada transexual Gisele Alessandra Schmidt e Silva, que integra o Grupo Dignidade – Pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros, que, há 25 anos, trabalha contra o preconceito e pelos direitos da comunidade LGBTI.

Advogada no Paraná, Gisele ficou conhecida no país nesta semana depois de uma comovente sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa do direito de a pessoa trans mudar seu prenome e sexo na carteira de identidade sem exigências, como a de ter realizado a cirurgia de redesignação sexual (mudança de sexo).

O episódio ocorreu no contexto do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) a pedido da procuradora federal Débora Duprat, dos Direitos do Cidadão. Gisele falou como "amigos da Corte" (ou amicus curiae, instituição que tem por finalidade fornecer subsídios às decisões dos tribunais, oferecendo-lhes melhor base para questões relevantes e de grande impacto) em nome da organização não governamental "Grupo Dignidade". 

“Sinto que estou fazendo história, mas, se estou aqui perante Vossas Excelências, é porque sou sobrevivente”, disse Gisele no início de sua sustentação.

O preconceito contra a comunidade LGBTI e a homofobia permearam a defesa da advogada, que conquistou o seu próprio registro civil sem a cirurgia, ao relatar o “apedrejamento moral e físico” – preconceito, homofobia e bullying - sofrido por ela e por milhares de pessoas trans. O problema é o discurso de ódio, diz ela.

Apesar disso, Gisele é otimista e afirma que, vencida esta ação no Supremo --o julgamento será em agosto--, a próxima batalha será pela criminalização da homofobia, que, para ela, também acontecerá via Judiciário.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a advogada conta a satisfação com sua atuação no STF e diz ter ficado impressionada com a repercussão. Em Brasília, ela foi procurada no hotel por pessoas chorando e pedindo ajuda. Agora, espera que seu trabalho sirva de inspiração para a comunidade LGBT.

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: Você é a primeira advogada transexual a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal. O que representa isso para você e para a luta pelos direitos civis da comunidade LGBTI?

Gisele Alessandra Schmidt e Silva: Foi o maior desafio. Acho que maior desafio de um advogado é fazer uma sustentação oral, tanto no Tribunal de Justiça quanto no Supremo. Foi o ápice da minha carreira... Na verdade, foi maravilhoso! As pessoas trans normalmente têm uma imagem negativa, de que se prostituem, de pessoas marginalizadas, infelizmente.

A importância [da argumentação oral no STF] foi de trazer uma visibilidade positiva para as pessoas trans. Serve também para as pessoas trans terem um parâmetro, uma inspiração. Ou seja: o que eu consegui, elas também conseguem.

O que você achou da repercussão da sua sustentação oral?

Eu me surpreendi com toda a repercussão que teve. Eu falei: "Vou lá apenas fazer o meu trabalho enquanto advogada". Não imaginei que fosse ter tanta repercussão assim. Fiquei bem feliz, principalmente com o apoio que eu recebi das pessoas.

Depois que terminou a sessão, quando eu cheguei no hotel, tinha pessoas trans que me acharam pelo Facebook chorando, pedindo ajuda: ‘Ainda bem que nós temos você para dar voz pra gente’. E contando as suas histórias: ‘eu preciso mudar. Não aguento mais sofrer tanto constrangimento, tanta violência’. 

Sua defesa é para garantir ao transexual mudar o prenome e o sexo no registro civil sem a necessidade de fazer a cirurgia de mudança de sexo. Você mesma conseguiu mudar seu registro civil sem a cirurgia. Como começou essa história?

No Paraná, tem um projeto, uma espécie de conciliação, que é favorável à mudança do prenome e do desígnio sexual sem a necessidade de cirurgia, mas há algumas exigências, como não pode ter restrição ao crédito.

Quem não pode entrar por esse projeto tem que entrar pela via judicial comum, e aqui no Paraná a gente tem o chamado conflito de competência: a Vara de Família se declara incompetente, aí vai para Vara de Registro Público... É um problema logo no começo para conseguir mudar. Então, tem que contratar um advogado. Quem não pode tem que ir à Defensoria Pública e entrar com uma ação de justificação de prenome e desígnio sexual. Ela vai para o Ministério Público ser ouvido e aí a a Vara se declara incompetente...

Como você avalia a batalha travada todos os dias contra o preconceito e pela diversidade sexual no Brasil?

Tivemos avanços significativos, mas ainda falta muito. Existe uma violação da dignidade das pessoas. Agora estamos numa época de retrocesso, por isso temos que fazer o máximo para impedir que esses retrocessos aconteçam. Ainda tem muito preconceito, mas eu sou uma pessoa bem otimista e acho que as coisas vão melhorar.  

O Congresso não avança na garantia dos direitos da comunidade LGBTI, e o STF tem se comportado de maneira muito mais avançada. A criminalização da homofobia também vai ser via Judiciário?

Enquanto existir um Legislativo extremamente conservador, cabe realmente ao Judiciário fazer aplicar a Constituição. Acho que o Judiciário pode acatar [à criminalização da homofobia].

A homofobia agride e mata milhares de gays, travestis e transexuais todos os dias no Brasil. Essa é a próxima batalha? 

Sim, [a próxima batalha é ] a criminalização da homofobia. O que aconteceu com a Dandara [travesti assassinada no Ceará em março deste ano] é inadmissível. Foi uma barbárie pavorosa, durante o dia, na rua. Várias pessoas podiam ter ajudado e não o fizeram. Por quê? Porque tem todo um discurso de ódio.

A gente é transformado em coisa mesmo, que você pode dispor, escravizar, destruir... Foi o que aconteceu com essa menina. Acima de qualquer coisa, era um ser humano que estava ali, sendo espancada, jogada numa vala e levando um tiro no rosto. É inadmissível!

Como é o trabalho do Grupo Dignidade em relação ao combate ao preconceito e à homofobia?

O Grupo Dignidade tem uma atuação extrema. Nós batalhamos bastante, com campanhas, oficinas, jornal, temos “ene” projetos no sentido de defender os direitos. É um trabalho exemplar.

Como foi a virada na sua vida para se assumir como Gisele? Você recebeu apoio?

Desde criança, sentia que não me encaixava no gênero designado. Só que é muito difícil isso. No meu caso foi mais porque venho de uma família tradicional. Durante muitos anos, eu usei uma máscara por medo. Eu representei um papel. Meu nome era Marcos, mas eu via que não era aquela pessoa. Então, [eu fingi ser quem não era] por medo de perder toda uma estrutura familiar --que foi o que acabou acontecendo quando eu me assumi.

Foi bem traumático e, até hoje, estou passando por sérias dificuldades. Perdi todo o apoio que eu tinha da família. 

O que é preciso fazer para mudar tudo isso? 

Acho que têm que haver uma conscientização muito grande. Acima de ser trans, gays, lésbicas, nós somos seres humanos. O princípio constitucional fundamental do Artigo 1º, incisivo 1º da Constituição, que traz a garantia da dignidade da pessoa humana, precisa ser preservado acima de tudo. Porque quando uma pessoa que tem a dignidade violada, [a dor] não é só daquela pessoa, é de todas as pessoas. O aconteceu com a Dandara não violou só a dignidade dela, mas a de todo mundo. Sinto vergonha alheia por aquilo. 

Edição: Camila Rodrigues da Silva