A distância e a hostilidade que o Congresso Nacional e o Poder Executivo da União mantêm sobre todo o povo pobre brasileiro, ao qual é infiel pela forma como desrespeita os seus direitos humanos fundamentais sociais, podem ser aferidas pela Medida Provisória 759 agora aprovada pelo Senado.
Modificando e criando direitos estendidos sobre todo o território do país, de provisório ela não tem nada, mas de definitivo ela tem muito, especialmente ao impor a todo o espaço brasileiro a abertura de todas as possibilidades para o mercado imperar acima da lei e da moralidade devidas a um bem como a terra, base física da vida e da cidadania de todas/os as/os brasileiras/os.
Sentindo-se ameaçado de cair, agora não por um golpe, como ele o fez com a presidenta Dilma, mas sim por uma decisão do Superior Tribunal Eleitoral, o atual (des)governo não quer deixar de fora, do que lhe resta ainda do poder ilegítimo pelo qual se autoinstituiu, os favores devidos a quem o comprou, e entre as forças com poder de pagar a elaboração de Medidas provisórias, leis, atos administrativos, implementação de políticas “públicas”, as do agronegócio exportador - agora com o episódio JBS isso ficou bem mais claro - despontam como as de maior pressa em cobrar a sua fatura.
Uma promissória das mais caras acaba de ser paga agora com juros e correção monetária, a um custo transferido e descarregado sobre toda a multidão pobre do Brasil com direito de acesso à terra. Pelo voto de 47 senadoras/es contra apenas 12, a referida Medida Provisória, a pretexto de promover uma completa e generalizada regularização fundiária de todo o nosso território, foi aprovada pelo Senado aproveitando a chance da folgada maioria ali instalada e fiel aos interesses latifundiários do (des)governo vigente, para consolidar o saque, a invasão do quanto ainda resta à nossa terra para um uso mais equitativo e justo do seu potencial de partilha solidária e sustentabilidade ambiental.
O que seduz em toda a mentira, como já advertia Dom Helder Câmara, é o quase nada que ela pode conter de verdade, pois enquanto a mentira nua gera desconfiança e afasta quem receia ser sua vítima, a verdade não precisa enganar para convencer, como o Senado acaba de fazer com essa Medida. Como o lobo se veste de ovelha, justificou a urgência da sua votação sob o argumento de que o direito dessas multidões pobres residindo em posses de terra não regularizadas inadmitia reconhecimento prorrogado.
Aí residia a parte importante da sua verdade, mas essa não passava de isca para impor a mentira. Ofereceu a maçã envenenada da entrega sem limites desses espaços de terra indispensável à vida de milhões de brasileiras/os pobres sem terra e sem teto, com direito de acesso à terra pelas reformas urbana e agrária, ao jogo ganancioso e desbragado do mercado, como se o real objetivo da peçonha oculta na serpente do dinheiro ao seu serviço não fosse o de “regularizar” o que já foi parte imensa do território brasileiro subtraída ilegalmente do domínio público, roubada do povo indígena e quilombola, desfalcada do que necessita e deve ser reservado para aquelas reformas, grilada pela manipulação de títulos falsos, “legitimada” em grande parte por concessões apadrinhadas sem fundamento legal algum, em troca de dinheiro ou de voto.
A edição on-line do Brasil de Fato de 31 de maio passado bem resumiu o desastre:
“A MP teve como relator o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que é líder do governo na Casa. Ele integra a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), conhecida popularmente como “bancada ruralista”, associada aos interesses do agronegócio. Em discurso feito em plenário, o peemedebista sustentou que a matéria estaria voltada ao progresso no campo e disse que o texto aprovado é resultado de um acordo entre diversos setores. A oposição questionou o posicionamento, destacando que segmentos populares do campo não foram ouvidos pelo governo. Também apontou que a medida irá dificultar a vida de trabalhadores assentados da reforma agrária, que ficarão sujeitos à venda de suas propriedades. “Será a maior reconcentração de terras da história do país”, projetou o senador Jorge Viana (PT-AC). {...}
Movimentos da luta agrária, entidades da sociedade civil e diversos especialistas têm se manifestado contra a MP desde quando a medida foi editada pelo Planalto. Na avaliação deles, a iniciativa estaria voltada aos interesses especulativos do mercado de terras, com potencial para agravar a situação fundiária do país. É o que considera, por exemplo, o pesquisador Sergio Sauer, professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB). Em entrevista concedida ao Brasil de Fato no último dia 25, ele apontou que, ao permitir que os lotes sejam vendidos a terceiros, a MP coloca em xeque o cumprimento da função social da terra, previsto em lei, e favorece a exclusão no meio rural. O objetivo é atender ao mercado de terras e à expansão dos negócios, especialmente a expansão das fronteiras agrícolas a partir do modelo hegemônico de desenvolvimento agropecuário, resultando em mais concentração fundiária, exclusão e expropriação da população pobre do campo”, assinalou o professor.
A ideia da regularização fundiária em si é altamente meritória do ponto de vista social. Enquanto partia de defensoras/es do direito à moradia de multidões pobres sem-terra e sem-teto, sempre contou com a reprovação de quem agora a defende com o poder de dar-lhe força de lei. A muito custo foi introduzida no Estatuto da Cidade, sendo sequestrada agora pelas bancadas fiéis ao latifúndio ruralista e urbano no Congresso Nacional, que tem na própria presidência do Senado um conhecido representante desse estamento.
Resta esperar que a Procuradoria da República ingresse, junto ao Supremo Tribunal Federal, com a ação direta de inconstitucionalidade dessa aberração jurídica, pois só está faltando o Trump vir ao Brasil solidarizar-se com o (des)governo do nosso país, cumprimentá-lo por mais um dos autênticos retrocessos sociais e ambientais que ele também defende: trocar a própria natureza da mãe terra, esgotando os seus recursos para impor-lhe outra: a de ser imolada pelo potencial do pior tipo de lucro, o suficiente para exauri-la nem que seja a custa da sua própria vida e a vida de quantas/os têm direito de acesso à ela.
(*) Jacques Távora Alfonsin é procurador estadual aposentado e advogado de movimentos populares.
Edição: IHU Online