A decisão do juiz de Brasília, que mandou fechar o Instituto Lula, mostra que o arbítrio avança rapidamente. A decisão vem às vésperas do depoimento de Lula em Curitiba, onde outras decisões de juízes de primeira instância já indicavam que estamos em pleno regime autoritário de corte jurídico-midiático: uma juíza (ligada aos fascistas do MBL) proibiu manifestações na capital do Paraná; outro (Moro) quer impedir Lula de gravar o depoimento, em clara afronta ao que diz o Código de Processo Civil.
Em 1968, quando os militares decidiram aprofundar a ditadura com o AI-5 (que fechava o Congresso, impedia habeas corpus e dava poderes absolutos aos fardados), um civil que apoiava o regime se colocou contra a medida: era o vice presidente (e jurista) Pedro Aleixo. Ele disse: “o meu medo não é o presidente abusar da autoridade; o meu medo é o guarda da esquina”.
No Brasil do golpe, hoje, cada juiz virou um guarda da esquina. Os setores mais lúcidos do centro democrático, e mesmo da direita partidária, já perceberam que avançamos para uma situação de arbítrio que afundará a todos.
Desde o ano passado, em conversas reservadas com outros blogueiros, tenho dito que vivemos hoje numa situação parecida com o período entre 64 e 68: já havia autoritarismo, mas o povo organizado resistia, inclusive nas ruas com a passeata dos 100 mil. Espero que a greve geral de 28 de abril não tenha sido nossa passeata dos 100 mil (toc, toc – bate na madeira).
Mas tudo indica que avançamos rapidamente para um novo 1968, com um AI-5 em câmera lenta. Cada juizeco de primeira instância sente-se investido da autoridade para condenar “políticos”, construindo uma narrativa de que “contra a corrupção” qualquer exagero ou abuso pode ser justificado.
Repito aqui o que já escrevi em texto recentes. Temos no Brasil hoje três forças em disputa:
- a esquerda e os movimentos populares, sob liderança de Lula;
- a direita política, tucana sobretudo, mas agregando também PMDB e outros partidos de centro-direita;
- a direita judicial-midiática, sob comando de Moro e da Globo (surfando no discurso da antipolítica).
Os setores 2 e 3 se uniram para derrubar Dilma. Mas agora essa aliança se rompeu.
Reinaldo Azevedo e Gilmar Mendes, com suas críticas aos abusos da Lava-Jato, são a expressão desse giro: os tucanos e seus aliados percebem que o golpe cria uma situação perigosa, em que o campo 3 pode quase tudo.
O quadro de deterioração institucional nesse início de maio inclui ainda:
- Congresso sitiado pela polícia, no dia da votação dos destaques do desmonte da Previdência;
- nova ordem judicial no Paraná, mandando cercar partes do acampamento da Democracia, montado para defender Lula do arbítrio de Moro.
A Globo cumpre papel central na radicalização do golpe. Dá apoio a Temer para aprovar as “reformas” – até debaixo de porrada, se necessário. E dá cobertura a Moro (e a qualquer guarda da esquina do Judiciário) que decidir investir contra Lula.
Os paralelos com os anos 60 são impressionantes:
- uma corporação do Estado (militares em 64; juízes/promotores no golpe atual) foi usada para criminalizar e derrubar o governo trabalhista;
- a direita política (UDN em 64; PSDB/DEM no golpe atual) insuflou essa corporação e pôs a classe média na rua;
- o centro fisiológico (PSD em 64; PMDB e outros menores no golpe atual) abandonou a aliança com o trabalhismo e bandeou-se para o golpismo;
- passado o golpe, a direita política tradicional (UDN = PSDB) minguou, o centro oportunista afundou (velho PSD = PMDB), e acabaram devorados pela direita estamental.
A diferença é que em 1964 derrubou-se Jango quando Vargas já estava morto. Dessa vez, Vargas está vivo e vai depor perante a República de Curitiba.
A direita não sabe o que fazer com Lula. Ele é um fantasma que se recusa a desaparecer. E volta para assombrar o golpismo.
Outra diferença central:
- em 1964, deu-se o golpe em nome da moralidade; e o poder ficou com um general “limpo” – Castelo Branco;.
- em 2016, deu-se o golpe também em nome da moralidade; e o poder ficou com um sujeito podre, Michel Temer e seu bando.
A figura nefasta de Temer cria dissonância; o golpe precisa urgentemente limpar sua imagem.
Por isso, a Globo abandonou o campo 2 (citado acima) da direita política. E apostou todas suas fichas na anti-política capitaneada por Moro e Janot.
Chama muita atenção que o diretor-geral da Globo e outros 12 empresários peso-pesados (do Itaú às Lojas Marisa) tenham se reunido ontem em caráter “reservado” com a presidenta do STF, Carmen Lúcia.
Se as “reformas” de Temer minguarem, o decorativo pode ser defenestrado no TSE. Carmen Lúcia (a terceira na linha sucessória; os presidentes do Senado e da Câmara respondem a processos judiciais) seria uma forma de criar uma narrativa de “limpeza”, coerente com a necessidade absoluta de impedir Lula de concorrer em 2018.
A direita anti-política vai aprofundar o golpismo nas próximas semanas. Depois de fechar o Instituto Lula, nada mais é proibido. Parafraseando Dostoievski: se a Constituição já não existe, tudo é permitido.
Só o combate na rua e nas redes pode esfarelar o golpe. A aliança com o centro (ou o que restou dele) é primordial.
Comandantes da PM, juizecos de primeira instância, chefes da quadrilha midiática: todos eles se julgam guardas da esquina, prontos a emparedar a democracia e aprofundar o golpe.
(*) Rodrigo Vianna é historiador e jornalista.
Edição: Revista Fórum