Golpe

Há quatro anos, Câmara aprovava instauração de impeachment contra Dilma Rousseff

A crise política de hoje demonstra a atualidade do alerta da ex-presidenta sobre os riscos de divisão do país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Dias antes da votação, manifestantes apoiavam Dilma no Palácio do Planalto - Lula Marques/ Agência PT

Depois de quatro anos da votação na Câmara do processo de impedimento que tirou da Presidência a economista Dilma Rousseff (PT), parece se consolidar a ideia de que o chamado da ex-presidenta por união no Brasil não vingou. Minutos após vencer as eleições em 2014, Dilma conclamou os brasileiros a estarem juntos e disse que seu primeiro compromisso no segundo mandato seria a disposição ao diálogo.

Os anos na política e a luta contra a ditadura deram à militante histórica a base para entender que os momentos de divisão não trouxeram bons frutos ao país. Ironicamente, foi  ao lado do então vice-presidente Michel Temer — tempos depois, um dos principais atores do golpe contra Dilma — que ela tentou chamar a atenção para os perigos da disputa. 

“Não acredito que essas eleições tenham dividido o país ao meio. Entendo, sim, que elas mobilizaram ideias e emoções às vezes contraditórias, mas movidas por um sentimento comum, a busca de um futuro melhor para o país. Em lugar de ampliar divergências, tenho forte esperança de que a energia mobilizadora tenha preparado um bom terreno para a construção de pontes. O calor liberado no calor da disputa pode e deve agora ser transformado em energia positiva de um novo momento no Brasil”.

:: O golpe de 2016: a porta para o desastre, por Dilma Rousseff ::

Na linha contrária às palavras da ex-presidenta, os derrotados no pleito reforçaram o incentivo à divisão. A narrativa para tirar Dilma do cargo já estava em gestação nos primeiros meses do segundo governo. Menos de um mês após a posse, o senador José Serra (PSDB) teria dito a correligionários que Dilma não iria concluir o mandato. A justificativa do tucano era um suposto ambiente de desgoverno, agravado pela crise econômica e por denúncias de corrupção.

Juntaram-se ao discurso público os também tucanos Alberto Goldman e Fernando Henrique Cardoso. O primeiro propagava que Dilma não resistiria à pressão, enquanto FHC defendia, em um artigo, que a derrubada da presidenta teria que acontecer a partir de uma ação na Justiça, porque um golpe militar "não é desejável". Dias depois da publicação do texto, o jurista Ives Gandra Martins divulgou um parecer em que afirmava que as investigações de corrupção na Petrobras poderiam ser a base para o impeachment.

O Congresso de Cunha

As relações de Dilma com o Congresso Nacional também ajudaram a impulsionar o golpe. Eduardo Cunha (MDB) foi eleito presidente da Câmara. O então deputado já vinha de históricos de embates com o Palácio do Planalto e acabou se tornando um dos principais agentes do golpe. Enquanto isso, a presidenta se esforçava em dar respostas práticas contra a corrupção. Em março, ela entregou o chamado “Pacote Anticorrupção”, conjunto de propostas elaboradas para inibir e punir irregularidades na administração pública. Sob aplausos, ela afirmou:

"Meu compromisso com combate à corrupção é coerente com minha vida pessoal, minha prática política e é coerente com minha atuação como presidenta da república. O que está acontecendo neste momento me nosso país, corresponde ao que eu penso, sempre pensei e sempre agi em conformidade. Eu sei, tenho convicção, que é preciso investigar corruptos e corruptores de forma rápida e efetiva para garantir a proteção do inocente ou do injustiçado".

Eduardo Cunha rompeu com o governo em julho de 2015. Ele havia sido alvo de acusações na Operação Lava Jato. Um dos delatores da investigação disse que Cunha recebeu 5 milhões de dólares em propinas. O então presidente da Câmara culpou o Governo pelos vazamentos de depoimentos envolvendo seu nome e chegou a dizer que o Sérgio Moro, juiz responsável pela Lava Jato em Curitiba, e o Ministério Público estavam alinhados ao PT. 

Em dezembro do mesmo ano, Cunha abriu o processo de impeachment na Câmara. Dilma se pronunciou afirmando que as alegações que embasavam o pedido eram improcedentes.

“Eu recebi com indignação a decisão do senhor presidente da Câmara dos Deputados de processar pedido de impeachment contra mandato democraticamente conferido a mim pelo povo brasileiro. São inconsistentes e improcedentes as razões que fundamentam este pedido. Não existe nenhum ato ilícito praticado por mim. Não paira contra mim nenhuma suspeita de desvio de dinheiro público. Não possuo conta no exterior, nem ocultei do conhecimento público a existência de bens pessoais. Nunca coagi ou tentei coagir instituições ou pessoas, na busca de satisfazer meus interesses. Meu passado e meu presente atestam a minha idoneidade e meu inquestionável compromisso com as leis e a coisa pública”.

A fala da presidenta viria a ser confirmada, meses depois do golpe, quando ela foi inocentada de todas as acusações

No mesmo discurso, a ex-presidenta mandou um recado aos que achavam que ela faria acordos para suspender o impeachment. Havia a especulação de que, se o governo garantisse votos favoráveis a Eduardo Cunha em um processo no Conselho de Ética da Câmara, a situação de Dilma seria revertida.

“Nos últimos tempos, em especial nos últimos dias, a imprensa noticiou que haveria interesse na barganha dos votos de membros da base governista no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Em troca, haveria o arquivamento dos pedidos de impeachment. Eu jamais aceitaria ou concordaria com quaisquer tipos de barganha, muito menos aquelas que atentam contra o livre funcionamento das instituições democráticas do meu País, bloqueiam a Justiça ou ofendam os princípios morais e éticos que devem governar a vida pública”.

O PMDB, partido de Cunha, continuava na base aliada, mas uma carta do ex-vice presidente Michel Temer em dezembro mudou o cenário. Magoado, dizia saber da desconfiança de Dilma quanto a ele e ao partido. Chamou a si mesmo de vice decorativo e inaugurou oficialmente sua participação na narrativa contra a ex-presidenta.

Decisão no Congresso

Em abril do ano seguinte, a Câmara aprovava — com 367 votos favoráveis e 137 contrários — a instauração do processo de impeachment no Senado, em uma sessão que entrou para a história brasileira como uma página vergonhosa. Ao justificar o voto contra Dilma, deputados usavam "Deus", "a família", nomes de parentes e um deles — o atual chefe do Executivo, Jair Bolsonaro — chegou a dizer que votava em memória do coronel Brilhante Ustra, primeiro torturador condenado no Brasil.

No mês seguinte, ao se defender no processo frente ao Senado, Dilma também trouxe a memória da ditadura à pauta.

“Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados e até assassinados. Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado”.

Emocionada, mas firme, ela reconheceu erros e exaltou a reaproximação com o povo.

“Nesta jornada para me defender do impeachment, me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade. Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros. Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia”.

Apesar de ter sido inocentada das acusações de corrupção na Petrobras, Dilma também não foi responsabilizada pelo suposto desrespeito à lei orçamentária e à lei de improbidade administrativa, que embasava o pedido de impeachment. Eduardo Cunha foi preso em outubro de 2016, alguns meses após a conclusão do processo que tirou Dilma do Palácio do Planalto. Ele foi condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Hoje cumpre prisão domiciliar por causa da pandemia do coronavírus.

Michel Temer foi preso duas vezes em 2019 por corrupção ativa e lavagem de dinheiro. O ex-vice-presidente está solto por causa de um habeas corpus e cumpre medidas cautelares: não pode manter contato com outros investigados na Operação Lava Jato e teve que entregar seu passaporte às autoridades. Aécio Neves (PSDB), que disputou o segundo turno com Dilma em 2014 e perdeu com uma diferença muito pequena de votos, é investigado em uma série de inquéritos sob acusações de corrupção passiva e obstrução de justiça e não tem cargo público.

Dilma hoje

Dilma vive no Rio Grande do Sul e também não tem cargo público. No entanto, ao contrário de seus algozes, participa ativamente do debate político no país e em seu partido. O Brasil de quatro anos depois do golpe ainda sofre as consequências das divisões estimuladas por seus opositores, que encontram tradução perfeita nas posturas do atual presidente Jair Bolsonaro. O capitão reformado segue à risca a cartilha da desunião.

Em um artigo publicado recentemente pelo Brasil de Fato, Dilma comenta o inabilidade do governo frente à pandemia global do coronavírus. “Bolsonaro mostra-se um psicopata eleitoreiro e pretensioso ao nada fazer e ainda culpar os governadores, a imprensa e os que usam a ciência contra o vírus. Lança os dados de um jogo macabro: se a epidemia diminuir, ele dirá que tinha razão e era apenas uma gripezinha; se aumentar, dirá que o isolamento de nada adiantou. Assim, em qualquer hipótese, aposta na morte”.
 

Edição: Vivian Fernandes