O projeto de Reforma Trabalhista pronto para ser votado pela Câmara dos Deputados atingirá em cheio a população negra com a precarização. As mulheres negras, em especial, com os menores salários e taxa de desemprego duas vezes maior que a dos homens brancos serão as principais prejudicadas. Por enfrentarem o racismo e o machismo no mercado de trabalho, elas têm mais dificuldade de ocupar postos formais, mais qualificados e que paguem melhor.
As constatações são do Seminário “A Reforma Trabalhista na vida das mulheres negras”, realizado na última quarta-feira (12), no Rio de Janeiro. Com a presença da deputada federal Benedita da Silva (PT), palestrantes da Procuradoria Regional do Trabalho, do Dieese, do Fórum Estadual de Mulheres Negras e da Justiça Global escancararam o objetivo da reforma: retirar direitos garantidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em benefício dos lucros do empregador. O debate foi realizado no Conselho Regional de Economia, no centro.
Do Dieese, a técnica Carolina Gagliano demonstrou que as mulheres negras são as mais vulneráveis , em ocupações com menor proteção social, sem carteira assinada, no emprego doméstico ou trabalhando como terceirizadas, em geral na limpeza. No entanto, a inclusão delas no mercado de trabalho ainda é um desafio. Reflexo do passado escravocrata e do racismo estrutural, a pesquisadora revelou que a taxa de desemprego delas é bem maior do que a do restante da população. No caso das mulheres pretas, é de 14%, o dobro da taxa de desempregados entre os homens brancos, de 6,9%. A de mulheres pardas, com a segunda taxa mais baixa, é de 13%, mais alta do que as desempregadas entre as mulheres brancas, 9,7%.
“O desemprego não é só maior entre as mulheres negras. Existe uma diferença não apenas na inserção de homens e mulheres no mercado de trabalho, mas entre mulheres negras e brancas”, destacou. “É muito importante a gente ver esse dado e entender que a realidade brasileira ainda tem como resquício a escravidão na nossa realidade objetiva hoje”, disse Gagliano.
A técnica também apresentou dados da remuneração média de mulheres negras, maioria na pirâmide do mercado de trabalho, que é R$ 1.125, contra R$ 2.589 dos homens brancos. Isso acontece, frisou, mais uma vez, porque elas estão nas ocupações menos valorizadas. Além disso, são as mulheres negras que enfrentam a jornada doméstica mais pesada. Dados do Ipea de 2013, revela Gagliano, mostram que as mulheres pretas e pardas gastam quase 22 horas semanais com afazeres da casa. Esse número cai para 9 horas quando a referência são homens não-negros. “Tem um estudo do Ipea contabilizando que mulheres trabalham 8 anos a mais que os homens”.
Com as mudanças propostas, a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho não apenas se tornará mais difícil pela discriminação, como mais precária, em piores condições, alerta a advogada da Justiça Global Alexandra Montgomery. Ela fez um apanhado sobre a exclusão das mulheres negras do mercado formal de trabalho desde a escravidão. Lembrou que desde o início do movimento feminista, as negras, no Brasil, já trabalhavam há tempos, como mulheres escravizadas, quituteiras ou trabalhadores livres em diversas atividades, mas sem o reconhecimento devido.
Segundo a advogada, não é possível fazer uma discussão sobre a flexibilização das leis do trabalho sem pensar em que serão as pessoas mais atingidas e que, neste debate, raça, classe e gênero estão entrelaçados. “Desde o pós-escravidão, o que sobrou para as negras, que sempre trabalharam? Sobrou o trabalho doméstico que ninguém que fazer”, frisou. Montgomery lembrou ainda a grande resistência que foi a formalização do trabalho doméstico . A medida equiparou os direitos dessas profissionais aos demais trabalhadores do país apenas em 2015.
Com a reforma trabalhista e o incentivo à precarização, a historiadora Wania Sant’Ana denunciou a estratégia do Estado de alijar a população negra das riquezas do país. Na avaliação dela, não é possível aceitar mais uma reforma que torne o mercado de trabalho excludente.
”Os fatos mostram a agressividade das elites contra o legítimo direito desse segmento (negro) afirmar que tem direitos, nós não somos iguais, portanto, quando o desmonte do Estado se apresenta, sabemos que vai se abater de diferentes formas e, no nosso caso, a perversidade é maior. São mais de 120 anos da lei que as pessoas chamam de Lei Áurea (da abolição) e somente neste última década, mal e porcamente que a população negra conseguiu obter alguns avanços”, criticou.
Impactos
Com a flexibilização da legislação em curso, além de tornar o emprego mais difícil e rebaixar salários e benefícios com auxílio transporte e alimentação, a deputada Benedita da Silva lembrou que a reforma torna a aposentadoria um sonho. Ele afirmou que outro projeto de lei do presidente golpista Michel Temer exige uma contribuição previdenciária de 49 anos para o trabalhador receber o salário integral. “Essas mulheres [negras] não vão conseguir contribuir todo esse tempo, embora tenham começado a trabalhar muito cedo”, criticou. Ela explicou que as mulheres negras costumam trabalhar desde muito novas, em subempregos, sem carteira assinada e tem a saúde prejudicada. Poucas chegam aos 60 anos, a expectativa de vida da população pobre, segundo estatísticas recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o instituto, até 2013, a maior ocupação feminina era empregada doméstica.
Para a deputada,as reformas propostas fazem parte do golpe dado pelo setor neoliberal e estão baseadas em argumentos enganosos: “Eles afirmam que com a Reforma Trabalhista vão gerar 1 milhão de novos empregos, mas do que vai adiantar se temos 13 milhões de desempregados?”, questionou. Segundo a parlamentar o capitalismo passa por uma reorganização e as mulheres negras não podem ser espectadoras ou cúmplices da retirada de direitos sociais.
“Estamos vendo a direita chegando, dizendo que o que é e o que não é papel do Estado. Depois de mamarem nas tetas do estado, agora querem um Estado menor, enxuto e esse estado enxuto não vai permitir políticas de ações afirmativas para colocar pobre, negrinho e negrinha na universidade e andando de avião. Eles querem acabar com a brincadeira”, afirmou.
A solução apontada pelas especialistas para garantir empregos e com isso as contribuições para a Previdência Social, é o crescimento econômico. Carolina Gagliano lembrou que durante os anos de 2003 e 2014, quando o país não estava em crise, o desemprego caiu e a renda aumentou, em especial, daqueles que ganhavam menos. “Qualquer argumento contrário ao crescimento é falacioso e pode ser refutado pela experiência dos últimos 20 anos. Toda flexibilização da década de 1990, não gerou mais empregos. A situação só melhorou nos anos 2000 com o crescimento da economia e a criação de 14 milhões de vagas com carteira assinada”. Recordou.
“Temos que barrar essas reformas na integralidade se não quisermos voltar ao patamares do início do século 20, de miséria e condições de semiescravidão” cravou a técnica do Dieese. Para a procuradora regional do trabalho Lysiane Motta, a reforma é uma volta ao passado.
“Se quisessem modernizar, que acabassem com o trabalho escravo, infantil, implementassem a agenda do trabalho decente da OIT (Organização Internacional do Trabalho), enfrentassem o asseio moral, a discriminação das mulheres terceirizadas, que ganham os menores salários, reduzissem a jornada para 40 horas semana e assegurassem o direito de greve”, afirmou Motta. “Isso é modernizar, o que eles estão fazendo é desmontar de direitos”.
Violações
A proposta da reforma trabalhista do presidente golpista Michel Temer altera as leis que garantem os direitos dos trabalhadores. A reforma tem como espinha dorsal a defesa da tese do negociado entre empregados e patrões sobre o legislado, que consta da CLT. Isso significa que poderão ser assinados acordos que ignorem direitos já previstos, com salários mais baixos ao dos anos anteriores, parcelamento de 13º, de férias e dispensas coletivas sem justa causa. A reforma também prevê o trabalho por demanda, por horas, a remuneração por produtividade e jornada de estendida, que pode levar o trabalhador a fazer até 12 horas em um dia.
Exclusão
A historiadora Wania Sant’Ana alertou ainda contra o incômodo da elite brasileira com a população negra, que desde o fim da escravização no Brasil, não foi incorporada à sociedade. Segundo ela, não é verdade que, em pleno 2017, pessoas negras não tenham escolaridade suficiente. “As pessoas negras não ocupam melhores vagas porque são discriminadas”, avaliou
O problema da exclusão, segundo a representante do Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, está refletido na baixa capacidade produtiva. “Um dos problemas do país é exatamente a falta de capacitação da população branca que não está apta a ocupar o lugar onde está. Especialmente as mulheres brancas”, disse. A historiadora lembra que desde a escravidão, a exclusão dos negros só trouxe prejuízos ao Brasil. “Esse é o estrago da discriminação”.
Para Sant’Ana, a reforma trabalhista “não vai dar certo, porque quando você decide que uma boa parte da população de um país tem que ficar de fora, não funciona”. “Não deu certo na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, quando 6 milhões de pessoas que eram responsáveis pela riqueza do país, quando as coisas ‘funcionavam’ foram marginalizadas”.
Ainda de acordo com a historiadora, o trabalho é basilar da vida em sociedade e sem acesso a ele, a população de pretos e pardos não têm condições de melhorar de vida e de se estruturar.
A procuradora regional do trabalho Lysiane Motta reforçou também que a proposta do governo desmonta a CLT prejudica a atuação da Justiça do Trabalho. As mudanças não vão permitir que a atuação de sindicatos, tampouco da Justiça, que costuma mediar relações desiguais, quando os trabalhadores não tem a mesma força de negociação que os patrões, caso dos terceirizados e empresas menores, onde estão as mulheres negras, em geral.
“O Ministério Público do Trabalho fez quatro notas técnicas contra essa reforma trabalhista. Ela não está sendo feita por que o a CLT é velha, está sendo feita para desmontar direitos”, afirmou.
A contradição, pontuou, está na queda da formalização, que deixará pessoas pobres desassistidas de benefícios previdenciários e tirará recursos fundamentais do INSS.
Edição: Vivian Virissimo