Daqui a duas semanas, os franceses já conhecerão o nome dos dois candidatos que disputarão o segundo turno para eleger o sucessor de François Hollande na Presidência da República, após 5 anos de mandato. A eleição acontece em um contexto político inédito de perda de espaço dos partidos tradicionais e fortalecimento de correntes políticas que se reivindicam como “antissistema”, tanto à direita quanto à esquerda. Desde o início do ano, as intenções de voto nas pesquisas de opinião tiveram significativa evolução.
Atualmente, os quatro candidatos favoritos estão com diferença de cerca de 5 pontos entre eles, sendo que ainda há 40% da população indecisa. Jean-Luc Mélenchon, líder do movimento “França Insubmissa” que apresenta um projeto ecossocialista centrado na melhoria das condições de vida dos franceses, comprometimento com a ecologia e novas alianças internacionalistas é o candidato que mais cresceu no último período. Mélenchon passou de 10% no início de março para 19% um mês depois, abrindo pela primeira vez na história do pós-guerra a possibilidade de um candidato de esquerda fora da social-democracia alcançar o segundo turno.
François Hollande: um balanço de mandato difícil de defender
Desde o início da 5ª República, no final da 2ª guerra mundial (1958), o socialista François Hollande foi o único presidente que não quis disputar a reeleição. Concentrando grandes expectativas de renovação na sua eleição em 2012, após 17 anos de governos direitistas – cujo ápice foi o ultraliberal e polêmico Nicolas Sarkozy - Hollande termina o mandato com uma das piores avaliações (menos de 20% de opiniões favoráveis) e com várias promessas de campanha não cumpridas.
Ao dar continuidade e aprofundar a política econômica e social de austeridade de Sarkozy, sem abolir a reforma da previdência como tinha prometido durante a campanha e implementando reformas antissociais como a trabalhista, que impõe o negociado sobre o legislado e várias reformas econômicas orientadas para desregulamentação do mercado (sem falar das intermináveis prorrogações do Estado de urgência após os atentados de 2015), Hollande suscitou a decepção da sociedade. E agora a população provavelmente vai manifestar nas urnas sua repulsa aos representantes dos tradicionais partidos da socialdemocracia: Benoit Hamon, do Partido Socialista, tem 9% das intenções de voto e François Fillon, do Partido dos Republicanos, representante da direita conservadora, 17%. Eles estão atrás de Emmanuel Macron (24%), do movimento centrista “Em marcha”; de Marine Le Pen (24%) da Frente Nacional de extrema direita, e de Jean-Luc Mélenchon (18%), segundo a pesquisa de opinião Kantar Sofres – OnePoint, divulgada no domingo, 9 de abril.
O balanço do mandato que se encerra de François Hollande tem também algumas medidas progressistas. Por exemplo, no plano dos direitos humanos, a aprovação do casamento gay e da adoção por pais homossexuais. E alguns bons resultados na economia, como o aumento de quase 100 mil novas empresas criadas no período, a redução da quantidade de empresas em falência, a melhoria de alguns indicadores de qualificação escolar e a retomada do crescimento do PIB a 1,1% em 2016.
Os resultados do seu governo também mostraram, com maior nitidez, o caráter antidemocrático das instituições Europeias, que, engessadas em tratados e normas, afetam a soberania dos Estados através da ampla influência do capital financeiro e do mercado. Essas instituições mostram sinais de esgotamento ao não atender mais as necessidades das sociedades e ao se apresentarem como espaço democrático fraco para propor alternativas.
O resultado singular das eleições prévias
O que tornou essa eleição particularmente inédita foi o resultado das duas principais eleições prévias, abertas a toda a população francesa, organizadas pelo Partido Socialista e pelo Partido dos Republicanos.
As prévias do Partido dos Republicanos (em novembro) elegeram o ultraconservador e católico François Fillon, próximo das ideias de extrema direita, contra o favorito e mais moderado Alain Juppé. Fillon é a favor do fim da seguridade social na área da saúde e da previdência, da redução de 500 mil vagas de funcionários públicos e da flexibilização da legislação trabalhista. Ele é hoje acusado de desvio de verba pública e sofre processo judicial, o que o fez perder boa parte de seus principais apoios políticos. Apesar das denúncias contra Fillon, o Partido dos Republicanos não quis apresentar outro candidato para substituí-lo, temendo o descontentamento dos eleitores.
Por outro lado, as prévias do Partido Socialista, em janeiro, manifestaram repúdio à continuidade da política do governo, com eliminação do favorito, o ex-primeiro ministro Manuel Valls, elegendo o ex-ministro Benoit Hamon, representante da corrente mais à esquerda do partido, que foi líder do movimento de oposição ao governo dentro da própria base governista no Congresso. O resultado rachou o Partido Socialista, já que seus principais caciques resolveram desrespeitar a vontade das urnas para declarar apoio ao centrista Emmanuel Macron. Fenômeno pouco comum na França, onde a disciplina partidária é mais forte que no Brasil.
Macron teve amplo crescimento de popularidade nesse mesmo período, beneficiando-se da migração dos insatisfeitos das prévias à direita e no partido socialista. Também ex-ministro da Economia durante o governo de Hollande, é figura do establishment do mercado e quadro executivo do funcionalismo público, ele concorre aos 39 anos no seu primeiro pleito. Macron não tem partido, e considera-se entre a esquerda e a direita. Diz reconhecer na primeira o conceito de igualdade, e na segunda a defesa da liberdade. Candidato do setor financeiro, ele promete flexibilidade no sistema de aposentadoria e abertura aos mercados. Mas sua agenda permanece liberal sobre assuntos ligados aos migrantes, aborto, etc. Ele é hoje o favorito das pesquisas em empate técnico com Marine Le Pen, de extrema direita.
Filha do fascista e negacionista Jean-Marie Le Pen, Marine Le Pen alcançou o grande desafio de tornar o partido Front National “aceitável”. Há 10 anos, a sigla só recolhia 10% dos votos. Ao afastar-se dos assuntos mais polêmicos como racismo e xenofobia, acrescentando propostas de cunho social e aproveitando-se da desconfiança suscitada pelos últimos governos, ela concentra hoje boa parte dos votos do eleitorado descontente em busca de alternativa, que ela seduz com propostas pouco elaboradas e argumentação patriótica. Marine Le Pen também é acusada de desvio de dinheiro público e de caixa dois em campanha eleitoral. Convocada para depor na Justiça, ela não compareceu, alegando indisponibilidade por causa da campanha eleitoral.
O caminho de Jean-Luc Mélenchon, o insubmisso
No campo da esquerda, há significativa conquista de espaço na disputa por parte de Jean-Luc Mélenchon, candidato do projeto popular de esquerda, encabeçando o movimento da “França Insubmissa”, que já disputou as eleições presidenciais em 2012 com uma etiqueta similar chamada “Frente de Esquerda”, quando ganhou 11% dos votos.
O candidato apresenta um programa que alia retomada do crescimento mediante investimento público, reforma fiscal progressiva, fortalecimento do sistema de segurança social e revalorização do salário mínimo, com agenda avançada na área da ecologia e energias limpa e sustentável. Outro grande pilar é a convocação de uma assembleia constituinte para reforma das instituições e a refundação dos tratados europeus, incluindo uma possível saída da França da União Europeia como eixo de negociação. O programa anda ganhando credibilidade e força, e pela primeira vez na história moderna das esquerdas, superou o candidato do partido socialista nas pesquisas.
Chamado varias vezes pelo socialista Hamon e por parte da opinião pública a renunciar em prol da candidatura do socialista, ele não recuou e não para de crescer nas pesquisas com uma estratégia de campanha criativa e participativa. Suas inovações suscitaram visibilidade na mídia como seu duplo comício realizado simultaneamente em Lyon e Paris por meio de um holograma, seu canal no Youtube com mais de 270 mil seguidores, um programa editado em quadrinho de maneira lúdica e até um videogame, chamado “Kombate Fiscal”, em que o personagem de Jean-Luc Mélenchon enfrenta os oligarcas para aumentar o orçamento público.
O programa - taxado em 2012 de “esquerdista” - foi amplamente trabalhado e apresentado de maneira orçada e detalhada para imprensa, com várias ferramentas online de simulação. É a primeira vez que um programa fundamentalmente à esquerda ganha tanta visibilidade na mídia, que tradicionalmente tende a valorizar candidatos social-liberais centristas.
O programa de Benoit Hamon, entretanto, é muito similar. O socialista já anunciou que em caso de vitória de Jean-Luc Mélenchon no primeiro turno, ele chamará seu eleitorado a votar no programa da França Insubmissa.
*Florence Poznanski é conselheira consular dos franceses do Brasil e militante da França Insubmissa.
Edição: Joana Tavares