Elizabeth Murray trabalhou como analista da Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA durante 27 anos. Momentos antes da eclosão da guerra contra o Iraque, era responsável por analisar a mídia iraquiana e elaborar relatórios que orientavam o governo dos Estados Unidos. Em seu depoimento para o Tribunal Popular da Guerra do Iraque afirmou categoricamente que Saddam Hussein não tinha relações com a Al-Quaeda: “Aquelas alegações eram pura ficção, assim como as alegações de que Saddam tinha armas de destruição em massa”.
O Tribunal Popular da Guerra do Iraque começou nesta quinta-feira (1º) em Washington, capital dos Estados Unidos. Estarão reunidos veteranos, além de seus familiares, para denunciar o custo humano e material da guerra que durou entre 2003 e 2012, além de reivindicar a criação da Comissão da Verdade e Responsabilidade pela Guerra do Iraque. A iniciativa é encabeçada pela organização Code Pink e reúne uma série de outros coletivos e institutos de direitos humanos estadunidenses. O julgamento continua nesta sexta-feira (2).
Murray afirmou também que seu departamento na CIA sofreu pressões políticas por parte do gabinete de Paul Wolfowitz, então subsecretário da Defesa. Segundo ela, sua equipe foi demanda três vezes com o objetivo de levantar informações que justificassem a invasão do Iraque, apesar dos relatórios que apontavam uma resposta negativa.
“É hora de encarar a verdade e responsabilizar nossos líderes pelos terríveis crimes de guerra cometidos contra o povo iraquiano. Também é hora dos EUA saírem do Iraque e permitirem aos iraquianos reconstruirem seu país livre de interferência estrangeira”, aponta.
Elizabeth Murray serviu como diretora adjunta para o Oriente Próximo no Conselho Nacional de Inteligência antes de se aposentar, após uma carreira de 27 anos no governo dos EUA, durante a qual ela se especializou em política do Oriente Médio e análise de mídia. Ela é integrante dos Profissionais de Inteligência Veteranos pela Sanidade (Vips), da Associação Sam Adam para Inteligência Íntegra e do Centro Marco Zero pela Ação Não Violenta.
Confira a íntegra de seu relato abaixo.
"Eu me aposentei em 2010 após uma carreira de 27 anos na CIA e nos primeiros 20 anos de minha carreira eu fui analista sênior de política e de mídia no ramo da Agência para fontes abertas. Esse departamento monitora e traduz discursos de líderes estrangeiros, editoriais de jornais e outras notícias estrangeiras que sejam do interesse dos tomadores de decisão nos EUA.
Nosso trabalho consistia em analisar os discursos de líderes estrangeiros e a propaganda política no conteúdo da mídia estrangeira, ajudando os tomadores de decisão com os quais trabalhávamos a entender as implicações para a política dos EUA e seus interesses. Era um trabalho excitante, desafiador e muito interessante.
No começo de 2003, pouco antes do início do ataque dos EUA no Iraque, eu era a analista sênior responsável pela mídia iraquiana no Centro de Fontes Abertas. O clima político em torno do Beltway [metáfora para o centro político norte-americano] havia se tornado muito carregado em meio a alegações de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa e havia esforços ativos em movimento para relacioná-lo à Al-Quaeda e os eventos do 11 de Setembro. Os tambores de guerra estavam rufando.
Uma manhã eu recebi um telefone do gabinete do então subsecretário de Defesa Paul Wolfowitz nos pedindo para encontrar matérias na mídia que tivessem coberto encontros entre integrantes da Al-Quaeda e autoridades iraquianas. Havia uma forte sugestão no modo pelo qual esta tarefa foi atribuída a mim de que um encontro entre os dois lados havia, na verdade, ocorrido – possivelmente em Praga – e que deveríamos encontrar evidências.
Eu dei à tarefa a mais alta prioridade. Eu entrei em contato imediatamente com nosso escritório no Oriente Médio responsável pelo monitoramento e tradução da imprensa iraquiana. Colocamos os monitores/tradutores em uma busca exaustiva sobre reportagens da mídia iraquiana relevantes em nossos arquivos que podiam conter essa informação. Também mobilizamos outros recursos disponíveis em Bagdá para que eles pudessem verificar fontes menos conhecidas da mídia iraquiana – nós superamos todos obstáculos.
Duas semanas depois, recebemos uma resposta definitiva: não havia evidência na mídia iraquiana de qualquer relação entre a Al-Quaeda e o regime de Saddam Hussein. Eu prontamente reportei essa informação ao escritório de Wolfowitz. Eu pensava que era o fim da questão.
Entretanto, uma semana depois o gabinete de Wolfowitz nos telefonou de novo, pedindo a mesma coisa – evidência na mídia de uma conexão entre o governo iraquiano e a Al-Quaeda. Então mobilizei todos os recursos que tínhamos e designei parte de nossa equipe fora do país para uma pesquisa em tempo integral. De novo, a conclusão foi negativa.
Relatei novamente. Inacreditavelmente, poucas semanas depois o pedido foi feito a nós uma terceira vez. Comecei a perceber que não estávamos dando a resposta que eles queriam ouvir. Nós estávamos expostos à pressão política. Nós já havíamos gastado muitas horas e muitos dólares em impostos nesta procura – e eu confiava nos profissionais que diziam que não havia evidência em relação àquelas alegações.
Eu perguntei então ao gabinete de Wolfowitz onde eles escutaram que um encontro entre a Al-Quaeda e autoridades iraquianas havia ocorrido – com a esperança de que isso pudesse ajudar nossa pesquisa. Entretanto, eu nunca recebi uma reposta.
Obviamente, nós agora sabemos que aquelas alegações eram pura ficção, assim como as alegações de que Saddam tinha armas de destruição em massa.
Em 2006 – três anos após o início da guerra contra o Iraque – a gestão Bush oficialmente admitiu que não havia evidência de qualquer envolvimento iraquiano com os ataques de 11 de Setembro. Apesar disso, os EUA continuam a devastar aquele país, até o presente momento.
É hora de encarar a verdade e responsabilizar nossos líderes pelos terríveis crimes de guerra cometidos contra o povo iraquiano. Também é hora dos EUA saírem do Iraque e permitirem aos iraquiano reconstruir seu país livre de interferência estrangeira.
Essa é a razão pela qual compartilho minha experiência com o Tribunal Popular da Guerra do Iraque – como testemunho das mentiras que levaram aos assassinatos em massa de tantas pessoas inocentes. Tenho esperança de que a verdade desvelada pelo Tribunal permita uma avaliação nacional e nos ajude a responsabilizar nossos líderes pelos crimes de guerra, passados e presentes, cometidos contra a nação do Iraque – crimes que não teriam ocorrido sem as mentiras que foram contadas para o povo dos EUA.
Elizabeth Murray serviu como diretora adjunta de Inteligência para o Oriente Próximo no Conselho Nacional de Inteligência antes de se aposentar após uma carreira de 27 anos no governo dos EUA, durante a qual ela se especializou em política do Oriente Médio e análise de mídia. Ela é integrante dos Profissionais de Inteligência Veteranos pela Sanidade (Vips), da Associação Sam Adam para Inteligência Íntegra e do Centro Marco Zero pela Ação Não Violenta".
Edição: José Eduardo Bernardes
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