Artigo

Marcha Mundial de Mulheres: Nenhum direito a menos, nenhuma mulher a menos!

O nosso feminismo se desafia a ser anti-capitalista, anti-racista, anti-patriarcal, anti-lgbtfóbico

Marcha Mundial de Mulheres |
É inexorável que para alcançarmos uma sociedade desse tipo, nós precisaremos ser muitas e influenciar um número ainda muito maior que nós mesmas.
É inexorável que para alcançarmos uma sociedade desse tipo, nós precisaremos ser muitas e influenciar um número ainda muito maior que nós mesmas. - Reprodução

O avanço do conservadorismo em nosso país se expressa em todos os aspectos das nossas vidas, e tem, no momento, como expoente, um governo golpista, resultado de um processo de impeachment que teve, para além da crise política, econômica e social, como argumentação, uma grande carga de machismo, que derrubou a primeira mulher presidenta do Brasil, em 127 anos de república. A expressão da intolerância às diferenças e ao que não se enquadra no padrão dominante têm tido como sujeito político antagônico os movimentos populares, colocando na mira, cada organização política de caráter progressista, as quais, vemos sofrer ataques sistemáticos nos últimos meses (Invasão da ENFF, prisão de dirigente do MST, espancamento de militante do Levante Popular da Juventude no DF, entre outros).

Algumas questões, então, se fazem presentes, do lado das classes dominantes o esforço tem sido de apagamento da recente história de direitos sociais conquistados mediante a constituição de 1988 e a implementação de políticas públicas nos últimos 12 anos de governos progressistas interrompidos pelo golpe jurídico-midiático de caráter imperialista. O que no cotidiano se apresenta mediante o sucateamento e privatização dos serviços sociais de saúde, educação e assistência social, tendo em vista a ofensiva de congelamento nos gastos públicos; o aumento do índice de violência contra as mulheres, população lgbt, assim como e avanço da intolerância religiosa e o genocídio da juventude negra.

Por outro lado, a classe trabalhadora vem demonstrando sinais de resistência, construindo ferramentas de luta unitárias, como a Frente Brasil Popular; indo às ruas, e encampando lutas históricas no nosso país, como a primavera feminista, os grandes atos por NENHUM DIREITO A MENOS e greves políticas, como a greve dos/as bancários/as e petroleiros/as que foram as maiores da história recente. O esforço de unidade da classe trabalhadora, compreendendo tudo o que isso significa, tem sido questionada a todo momento a partir de argumentos do tipo que “classe” não existe mais, que houve uma supervalorização dessa dimensão por parte da esquerda ou a consideração apenas de uma das dimensões tais como gênero, sexualidade ou raça na tentativa de explicar a complexidade dos fenômenos sociais.

O cenário das eleições municipais e câmara de vereadores tornou bastante presente a pergunta “mas como não vai votar em uma mulher?”, “mas ele é negro, temos que votar nele”, “gay só vota em gay”. Percebemos que a direita conservadora tem se apropriado do discurso identitário assim como o esvaziado em relação a conteúdo combativo e classista. No entanto, a difícil conjuntura nos mostrou que é preciso um sólido projeto político que unifique as bandeiras de toda a classe trabalhadora.

A interrupção da democracia brasileira e o resultado das últimas eleições apontaram que de forma fragmentada temos sofrido derrotas nas últimas batalhas, considerando que o monopólio do capital tem apenas se agravado e que o espaço da política sido cada vez mais sucumbido pelo grande poder econômico. Compreendemos que o golpe em curso no país, nos coloca alguns desafios. Se tivemos uma década de avanços no que se refere às políticas públicas em relação à população lgbt, negra, mulheres e, portanto tivemos avanços quanto à visibilidade de questões como estas, a realidade tem mostrado que precisamos avançar ainda mais. Precisamos construir um projeto político e colocá-lo a disputar corações e mentes nesta desenfreada luta pela retomada da democracia.

Por isso, a urgente reinvenção no cotidiano da luta, entre “as velhas estruturas” e os “novos movimentos sociais” tem sido um belo exercício de compreensão do nosso lugar –povo brasileiro- inserido em uma realidade estruturada a partir da uma divisão internacional, social, sexual e racial do trabalho.

É preciso voltar algumas décadas para tentar se aproximar do imbróglio formado nessa questão da representatividade, identidade e projeto político coletivo de poder. Existe todo um esforço literário, estético e político de apresentar o mundo pós-queda do Muro de Berlim como sendo o último suspiro do socialismo e da perspectiva marxista. De lá pra cá, os intelectuais orgânicos das classes dominantes insistem em que o mundo é um esfacelado de pedaços, as coisas não tem origem, as grandes narrativas não explicam, a política não faz sentido e a dimensão estrutural sucumbiu.

Essa falácia cria uma atmosfera obscurantista ao que se refere à classe trabalhadora. Constrói-se uma narrativa em que identificar-se enquanto classe trabalhadora estaria ligado aos ideais utópicos de um passado longínquo em que nada teria a ver com a nossa condição atual. Operou-se, portanto a disjunção entre sermos mulheres trabalhadoras negras, mulheres trabalhadoras lésbicas, mulheres trabalhadoras transexuais, deixando a lacuna histórica da condição central das mulheres enquanto trabalhadoras.

Compreendemos que o difícil contexto de avanço sobre os nossos direitos sociais, reprodutivos e trabalhistas, tem nos impulsionado a resgatarmos de forma bastante audaciosa esse sujeito político coletivo – mulheres trabalhadoras – em que temos protagonizado uma série de enfrentamentos e resistências ao golpe em curso no país.

A afirmação do sujeito político em ação “mulheres trabalhadoras” não pode ser confundido com uma tentativa de homogeneização da classe, nem tampouco, com a invisibilidade das condições sociais que atravessam o corpo e vida das mulheres a partir das suas diversidades de raça, sexualidade, regionalidade e idade. Assim, percebemo-nos do lado certo da trincheira e evitamos debates ideológicos que muito mais nos esfacelam, enquanto mulheres da classe trabalhadora, que lutamos por reformas e por revolução.

Nos chama bastante atenção, que a desatenção sobre quem são os reais inimigos, esteja se mostrando em diferentes lugares, no interior do que tem sido chamado de “feminismo radical”, em que existe o rechaço por organizações mistas; nas universidades, aonde existe distância entre a prática e teoria baseadas no irracionalismo dos discursos conduzidos pelas teorias pós-modernas. Percebemos a tentativa de apagamento da dimensão da classe trabalhadora e o apelo às idiossincrasias no plano da “individualidade de cada um”, como um dos aspectos da retomada da lógica neoliberal. Sem dúvida, é fundamental as transformações em nossas vidas particulares, cada uma de nós deve ter passado por várias dificiculdades e gostaríamos que nossas vizinhas, irmãs, amigas pudessem se desvencilhar de situações a que consideramos de subserviência. No entanto, nosso desejo é que as transformações a nível micro possam despertar em cada vez um número maior de mulheres a necessidade de ser coletivas, de fazer do feminismo parte da prática e horizonte da revolução socialista que sonhamos. Este tem sido o salto político e ideológico que a conjuntura têm nos colocado como um daqueles bons desafios. Para tanto, seguimos nos organizando, formando e lutando!

O nosso feminismo se desafia a ser anti-capitalista, anti-racista, anti-patriarcal, anti-lgbtfóbico e é inexorável que para alcançarmos uma sociedade desse tipo, nós precisaremos ser muitas e influenciar um número ainda muito maior que nós mesmas. É sabido que todos os processos revolucionários da nossa história contaram com a presença massiva das mulheres, de forma organizada e conjunta aos nossos companheiros da classe trabalhadora. Um processo de transformação da realidade, no nível de radicalidade a que nos pretendemos, só se mostra possível incorporando toda a classe trabalhadora. Nos interessa, enquanto feministas socialistas as mudanças que sejam estruturais e coletivas e que nos lancem enquanto povo a patamares mais próximos ao horizonte de um mundo em que desapareçam as desigualdades e reine a liberdade.

Esperamos que frente aos desafios colocados, possamos fazer o movimento de retomarmos lições históricas passadas, a exemplo de experiências de revoluções que triunfaram na América Latina e avançarmos nesse capítulo da história brasileira, em que a herança escravista e patriarcal é marcante, mas que nossa resistência é ainda mais visceral e nos mantém, acesas, firmes e em marcha até que todas sejamos livres!

Neste dia 25 de novembro, construiremos o dia de luta e enfrentamento ao golpe e exigiremos o fim da violência contra nós, mulheres trabalhadoras. Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres! Nenhum direito a menos! Nenhuma mulher a menos!

*Júlia Garcia e Tita Carneiro são militantes do Núcleo Negra Zeferina da Marcha Mundial das Mulheres e Doutorandas do PPGNEIM – Programa de Pós-graduação em Gênero, mulheres e feminismo.

Edição: ---