O crescimento da violência como forma de solução de conflitos, sejam pessoais ou sociais, é um fato. As mídias em geral promovem uma violência simbólica diária, banalizando ações extremas e fomentando ódios e preconceitos. O clima de medo e guerra favorece a concordância com ações extremas.
E quando além disso se tem no Congresso parlamentares que usam o púlpito para defender ações de preconceito e ódio, além de ofender minorias, passa-se a se ter um aval institucional para opiniões preconceituosas e de extermínio.
A ascensão da extrema direita no planeta foi coroada com a vitória de Donald Trump, que muitos duvidavam. Apesar das diferenças entre os personagens, Adolf Hitler também não era levado a sério pela maioria do seu país, tendo sido eleito com pouco mais de um terço dos votos. Seu livro Mein Kampf onde descreve as ações de extermínio que considerava necessárias para o sucesso do povo alemão, entrou em domínio público em janeiro deste ano. Ou seja, agora o estado alemão da Baviera, que tinha a propriedade dos direitos autorais do livro, não pode restringir sua circulação como o fez desde a Segunda Guerra. Embora este fato não tenha impedido o texto de circular por todo o planeta, fazendo um sucesso inacreditável nos últimos anos.
Dia desses passei por uma banca de jornal no bairro do Flamengo, zona sul do Rio, e estavam lá para serem vendidos exemplares de Mein Kampf, o livro escrito por Hitler e conhecido por suas mensagens radicalmente racistas, que propõe o extermínio de determinados grupos sociais. Dias depois, passei de novo e todos os exemplares tinham sido vendidos. Livros colocados ao lado, best sellers de leitura rápida, ainda estavam por lá.
O TJ do Rio proibiu em fevereiro de 2016 a venda e divulgação de Mein Kampf no estado. A ação cautelar foi ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que expediu mandados de busca e apreensão nas livrarias e determinou multa de R$ 5 mil para quem descumprir a decisão. Segundo reportagem de O Globo de 3 de fevereiro, “O promotor de Justiça Alexandre Themístocles, que subscreve a ação, se baseou no artigo 20 da Lei 7.716/89, que estabelece pena de reclusão de um a três anos para quem 'praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional' e de dois a cinco anos se 'cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza'. Na ação, o órgão requer à Justiça a busca e apreensão do livro nas editoras e livrarias”. Pelo jeito esqueceram das bancas de jornal.
Segundo Antoine Vitkine, autor de Mein Kampf, a história do livro, “o livro de Hitler tenta arrastar os leitores a uma esfera fora da razão, reduzindo a realidade a abstrações, a palavras de ordem irreais”(...)“O destino desse livro requer que se dê atenção aos projetos políticos fanáticos e violentos, sem nunca subestimá-los, sobretudo quando são tornados públicos e particularmente quando liderados por homens suscetíveis de leva-los a cabo (...) O principal triunfo dos neonazis não é a glorificação dos piores crimes nazis, mas sua minimização”. E cita o sociólogo Klaus Theweleit: “o fascismo e um modo de produção da realidade, não uma questão de forma de governo ou de forma de economia, nem de um sistema, qualquer um que seja”. “O livro e o conjunto da propaganda nazi tornaram a população passiva frente aos desmandos (...) é o princípio da conspiração à luz do dia”
No livro de 1925 do futuro ditador alemão, o autor deixa claro que o grande sucesso do processo de convencimento político se dá pela propaganda: “A grande massa de um povo não é composta de professores nem de diplomatas. Ela não tem acesso às ideias abstratas. Em compensação, será mais fácil empolgá-la no terreno dos sentimentos, e é aí que se encontram as molas secretas propulsoras de suas reações”.
Importante lembrar que os nazistas não instauraram um regime de terror contra a população em geral, mas a grupos específicos: judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, deficientes mentais, negros, além das críticas às mulheres que não se sujeitavam ao papel de meras reprodutoras da nação ariana. Quem não se enquadrava em nenhum destes grupos não se preocupava. Ou, no mínimo, não reagia.
Semelhante a alguns políticos aqui do Brasil que negam o que disseram ou escreveram em vésperas de eleição, Hitler renegou publicamente o que escreveu em seu livro até conseguir o controle total do país. Em entrevista a uma emissora francesa, por exemplo, Hitler negou sua intenção de ocupar a França, ação que descrevera no livro, alegando que o momento político em que escrevera era outro. Ele tinha muitos simpatizantes no país e a direita francesa o apoiava abertamente. Não muito tempo depois o país sentiria o peso das botas militares alemãs.
Na verdade, tudo que ele escreveu no livro ele fez. O incêndio do parlamento alemão, a anexação de países, a política de extermínio de grupos. Em 1941, depois de dominar “o mais vasto território da Europa desde Napoleão”, deixou registradas as seguintes palavras em uma reunião do Partido Nacional-Socialista Alemão: “Minhas profecias sempre foram alvo de zombaria. Entre os que achavam graça na época, muitos hoje não riem mais; e os que continuam rindo talvez já não o façam em breve”.
Quando vejo hoje algumas pessoas menosprezando os políticos que defendem ideias absurdas, racistas e homofóbicas, fico preocupada, pois foi exatamente assim que o nazismo cresceu. E seus equivalentes fascistas pelo planeta. Por serem ideias que fogem de qualquer base real e serem um conjunto de preconceitos e de práticas de intolerância, quem tem um mínimo de base política acha que pode desprezar estas ideias. Pois elas devem ser combatidas e não ridicularizadas.
Na obra Mein Kampf, a história do livro, o autor Antoine Vitkine, faz uma relação entre o aumento da venda do livro e o crescimento de organizações e ações fascistas ao longo dos últimos anos. E o crescimento das vendas do livro em todo o planeta, antes mesmo de entrar em domínio público, é preocupante.
O aumento do número de edições de Mein Kampf em diversos países pode indicar o crescimento dos ideais fascistas. E a ascensão e consolidação da ideia de que a salvação de um país é a extinção de determinados grupos sociais que sangram a nação. O livro é vendido amplamente não só na Europa e toda a América, mas também na Ásia, e África. Le Figaro revelou ao mundo que jovens nacionalistas da Mongólia usam a cruz gamada como símbolo (reportagem do jornalista François Hautner de 14/10/07). Na Turquia a obra é muito popular e as lideranças do partido islamo-nacionalista BBP e do MHP, Partido da Ação Nacionalista, recomendam a leitura do livro a seus militantes. A juventude ultranacionalista usa como slogan Turquia: ame-a ou deixe-a. Parece familiar?
Na Índia, segundo reportagem da revista Time, Mein Kampf está entre os três livros mais vendidos pelos camelôs de Bombaim, nas várias línguas regionais indianas. Para boa parte da juventude indiana Hitler é um modelo de nacionalismo e disciplina. O país foi governado pelo ultranacionalista BJP de 1998 a 2004 e detém vários governos estaduais. Partido que, à semelhança da Alemanha nazista, tem sua milícia armada, a RSS. Eles defendem a Índia apenas para os hindus e atacam cristãos, muçulmanos, estrangeiros e mulheres liberadas. Para estas o castigo é o estupro.
O 2014 Persecution Report lançado pelo Catholic Secular Forum revela a gravidade da situação. Neste ano foi registrado o assassinato de cinco cristãos, agressões a mais de 300 padres, pastores e líderes das comunidades cristãs, além de mais de 2 mil ataques a mulheres e crianças cristãs, na maioria estupros, por ódio religioso. O relatório também afirma que, até aquele ano, já chegava a 60 o número de igrejas ocupadas, profanadas e transformadas em bases para o RSS.
Uma das coisas mais assustadoras da teoria da Mein Kampf é a desumanização de setores da sociedade em nome da pureza. E quando vejo as críticas ao PT se materializando em atitudes de ódio gratuito, onde vale tudo desde que seja para sacanear petistas, não tenho como não comparar com as atitudes dos jovens apoiadores da SS que faziam o jogo sujo do nazismo antes de Hitler se consolidar com o controle total do estado alemão. As críticas ao PT são muito necessárias pelos mais variados motivos, mas uma coisa é a crítica política, o apontar de erros etc. Outra é o ódio insano que muitos destilam sem nem saber explicar. Como a médica que não atendeu uma criança por esta ser filha de petista. Não atender alguém por qualquer motivo que seja já é um ato contrário ao juramento feito por médicos na formatura. Nunca vi ninguém dizer que não vai atender a um traficante violento, com vários crimes nas costas. Médicos fazem isso toda hora na rede pública do Rio de Janeiro. Mas por alguém ser contra o PT, o FILHO não merece atendimento médico? Por ter nascido com a carga genética de um petista ele está contaminado? A desumanização de petistas já está acontecendo para parcelas da população. É necessário separar estas pessoas das que colocam sua opinião sobre o partido nas urnas, que é o campo das disputas partidárias.
Absurdo ainda maior foi saber que o Conselho Regional de Medicina deu razão à médica. Ou seja, quando uma instituição como um conselho de medicina ratifica uma ação desumana, que contraria os códigos de ética escritos por eles mesmos, e diz que filhos de petistas não precisam ser atendidos, se conclui que filhos de petistas não são seres humanos. É assustadora a naturalização da intolerância.
É a desumanização do adversário que justifica as ações violentas, pelo entendimento de que ele precisa ser exterminado em nome de alguma coisa. Para o nazismo, foi em nome da pureza da raça. Em nome dela milhões de pessoas, sendo negros, poloneses, homossexuais, comunistas, ciganos, deficientes físicos e mentais, além de judeus, foram eliminados, tudo em nome da pureza. Sem contar a perseguição a ateus e praticantes de religiões africanas e orientais.
No Brasil, o crescimento dos relatos de intolerância religiosa assustam.
O medo venceu a esperança. Quem ganha com isso? As grandes corporações empresariais e financeiras que se associam aos grupos extremistas.
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