A vitória de Trump é um tapa na cara de quem espera um mínimo de respeito ao outro na democracia. É mais um episódio desses terríveis anos 2010, que parecem prontos a destruir os avanços conquistados a partir dos anos 1990 por liberais (nos Estados Unidos) e social-democratas (na Europa), em especial no respeito às minorias, na vida cotidiana e política. Essa era a grande bandeira da esquerda não revolucionária e quase não reformista, porque a contrapartida dessa política tolerada pela direita era a submissão ao neoliberalismo na economia e ao conformismo na vida política em geral.
Para a América Latina, que viu Chávez, Mujica, Kirchner e Lula, mas também Evo Morales, Bachelet e Rafael Correa, reverterem, ainda que timidamente, uma hisória de exclusão econômica e preconceitos contra pobres, negros, índios e mulheres, a conquista de Trump é mais um sinal de que o desastre caminha a passos largos, na velocidade da fibra ótica e das redes de invasão de privacidade e deformação de opinião da internet e dos comunicadores instantâneos.
A direita festeja, sapateia, comemora. Ela abandonou o jogo da razão, mas ganhou mesmo assim. E ganhou em Estados que Barack Obama levou nas últimas eleições, como Pensilvânia, Wisconsin e Flórida.
E o pior disso é que uma vitória de Hillary não representaria o contrário disso. Representaria apenas a manutenção de uma barricada recuada, que tentaria conter, na frágil base de um voto que não seria respeitado por grande parte dos norte-americanos, posições ainda não entregues diante das pressões da indústria armamentista, do mercado financeiro e dos interesses geopolíticos. Esses setores apoiavam Hillary não por suas características progressistas, mas porque sabiam que, contra eles, a candidata democrata não faria nada na Presidência. Pelo contrário, seria uma fiel aliada. E a instabilidade de Trump era menos desejável que o bom comportamento da eventual presidenta.
Se ganhar com Hillary seria certamente ruim para o planeta, ela perder para Trump é, por outro lado, um horror para a humanidade. Ainda mais com o resultado da eleição para o Congresso, onde os republicanos mantiveram o controle da Câmara dos Representates e do Senado - e que pode acabar dando carta branca para atitudes radicalmente reacionárias de Trump.
Hillary, diga-se, perde em grande medida por sua atuação terrível junto a um governo, o de Barack Obama, que prometeu vencer o medo, mas que se acovardou diante de um mundo em crise.
Obama não alterou em nada significativamente a política imperialista dos Estados Unidos. Pelo contrário: seu governo entrará para a história como o período em que, com apoio do país, a paz recuou na Palestina, nazistas chegaram ao poder numa coalizão na Ucrânia, a Síria caiu numa guerra civil terrível e a promessa de uma vaga democrática da Primavera Árabe foi destruída, em quase todos os lugares em que trouxe uma expectativa positiva, numa ressaca de violência, ditadura e/ou caos.
O resumo disso é o paradoxo de sua candidatura: ela surgiu, oito anos atrás, e foi abraçada pela juventude e pelos setores mais progressistas como uma resposta crítica a uma candidatura Hillary. Oito anos com Obama e o que o Partido Democrata apresenta ao eleitor? O nome que representava justamente o status quo.
Os anos Obama ficarão marcados como aqueles em que a “esquerda” norte-americana descuidou da pauta dos direitos humanos na América Latina, mantendo o apoio a setores reacionários – Uribe na Colômbia, Macri na Argentina e Temer no Brasil, para não falar da oposição venezuelana – que só podem ser gratos a Obama.
Para os pobres norte-americanos, Obama não foi tão ruim. A economia não desandou, alguma recuperação econômica favoreceu setores que estavam marginalizados quando de sua chegada ao poder e, finalmente, o Obamacare era, de fato, uma política que melhorava a saúde dos que nada tinham. Mas sem o Executivo e sem o Congresso, que farão os democratas progressistas (que não são todos) para barrar esses avanços?
A pior derrota de Obama-Hillary não é eleitoral. É o esfarelamento de um legado que já não conseguiam ou não queriam defender, mesmo estando no poder.
A vitória de Trump é uma vitória da desrazão, do despotismo empresarial que, sintomaticamente, ele representou tão bem no show de exclusão social transformado em reality show de O Aprendiz.
O consolo é esperar que as previsões se confirmem, e que Trump fracasse na gestão do país. Isso representaria um Estado norte-americano menos intervencionista no mundo, e, sobretudo, na América Latina. Talvez, com isso, a gente, fora dos Estados Unidos, volte a respirar com mais liberdade. O porém é que esse é um cenário possível. Mas não certo: o fato é que tudo pode, ainda, piorar. Ainda não estamos no fundo do poço.
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